E-book com 26 contos, escritos entre 1988 e 2000, boa parte deles publicados em coletâneas no Brasil e em jornais de Belém do Pará, além do site OVERMUNDO. www.overmundo.com.br/perfis/nato-azevedo http://natoazevedo.blogspot.com/
sexta-feira, 24 de abril de 2009
SINOPSE (resumo dos contos)
Considerações sobre "QUASE NADA..."
Em se tratando de livros "QUASE NADA..." será a primeira publicação deste Autor, embora já tenham sido lançados em edição artesanal (em xerox) os livretos "Palavras ao Vento" -- de poesias, com 200 cópias, em Belém, 1985/87 -- e um "Quase Nada" com variados textos (músicas, crônicas, poemas, contos, ilustraçes), este último com tiragem de 80 exemplares, entre 1988/1990.
Minha obra atual contém apenas contos, englobando o que de melhor produzí nos últimos vinte anos, boa parte deles com pitadas de non-sense e de absurdo, mas algo também baseado em minha vivência no que ainda resta da outrora exuberante Amazônia, em 26 anos de convivência com suas coisas, pessoas, hábitos e... tradições.
SUMÁRIO
01 - MANJAR CELESTIAL - os primeiros missionários que povoaram o Brasil enfrentaram muitos inimigos; pajés invejosos, costumes adversos, as tentações da carne e também fiéis... canibais. Frei Barnabé Tello lutou para superar tudo isso.
02 - UM PRESENTE ESPECIAL - a vida nos garimpos pode mudar de um dia para outro mas, mesmo assim, sorte e azar são como irmãos siameses... andam sempre juntos !
03 - O IMPASSE - o terreno atrás da igreja-matriz era só um brejo, contudo os dois fazendeiros mineiros vivam às turras por causa dele. Nem o vigário local conseguiu resolver a pendenga. Foi preciso contratar um Juiz de Paz de outra cidade para desfazer o impasse.
04 - TIRO E QUEDA / QUEDA E TIRO - a partir de fatos e notícias do dia-a-dia, principalmente de jornais, surgem minicontos onde o inverossímil impera e a fantasia é mais real que a própria realidade.
05 - A ÚLTIMA CHANCE - jogos de azar são a única oportunidade que a maioria tem de mudar de vida. Um jovem nissei também teve, com a Lotomania, sua derradeira chance. Só mesmo um terremoto (no Brasil?!) poderia arrasar sua sorte.
06 - MERCADORIA DE NATAL - dezembro é tempo de visitar amigos e parentes que não se vê durante o ano inteiro. É Natal... tempo de vender quase tudo, inclusive um filho !
07 - O FANTASMA DO SINO - estradas, à meia-noite, são terreno propício para o surgimento de almas penadas, bruxas e fantasmas. Dessa sina não escapam nem as rodovias amazônicas.
08 - O LABIRINTO - "quem tem um, não tem nenhum", diz velho ditado popular. O aposentado Orinaldo pensava assim, quando invadiu o lote desocupado de um seu vizinho de posses. Recebeu em troca uma lição i-nes-que-cí-vel.
09 - MINIDRAMA EM 2 ATOS - temas distintos em dois minicontos com um pé no fantástico e final-surpresa.
10 - UM SINAL DO ALÉM - os deuses sempre escrevem certo mas nos negamos a ver seus sinais. O "médium" Dr. Nicolau cometeu o maior erro da sua vida ao desdenhar o jovem pivete "Didi". Ah, se arrependimento matasse!
11 - O SAL DA TERRA - finalmente a centenária castanheira tombou, ferida por machados e serras elétricas. Morreram com ela os sonhos e os devaneios sentimentais de meia cidade, soterrados sob cimento e pedras.
12 - O ÚLTIMO PESADELO - curtindo a sesta debaixo de frondosa mangueira o caboclo parauara sonhava feliz. Acordou apenas para assistir ao maior pesadelo de sua existência.
13 - SOLUÇÃO CRIATIVA - definitivamente, o Céu estava uma bagunça e nem o Criador conseguia dar um basta naquela baderna. Então, Deus convocou São Pedro, que intimou São Benedito, que reuniu o pessoal... daí, surgiu a solução!
14 - MANCHETE FATAL - êle "bolara" e executara o crime perfeito. Houve apenas um senão... a manchete fatal !
15 - O "RABO" DO TATU - uma curiosa estória sobre caçadas, tatus, caboclos, seus patrões da cidade e de como preconceitos arraigados influenciam a vida de quase todos, no interior.
16 - CINEMA DE VANGUARDA - êle foi prestigiar o cinema nacional, nos anos 70, num "pulgueiro" em Botafogo. Quase apanhou do "lanterninha" e acabou sendo atropelado pela "carrocinha".
17 - O ETERNO COMBATE DOS VENCIDOS - breve alegoria a respeito da Medicina, sobre médicos e sua luta para salvar vidas.
18 - A ÚLTIMA CEIA - o imperador Nero estava intrigado: seus magnficos leões recusavam-se a devorar escravos africanos. Sua Majestade ordenou que descobrissem porquê !
19 - PAISAGEM AMAZÔNICA - todos se foram, só êle ficou ali, entre matas e águas. Mas, a bem da verdade, nem êle estava lá !
20 - BENÉ, O "DENTE DE OURO" - nas Minas Gerais dos inconfidentes "Bené" era somente um jovem escravo a serviço do ideal de libertar seus irmãos de côr. Até que seu senhor descobriu...
21 - O OLHAR PENETRANTE DA NOITE - a Noite na floresta tem alma, olhos hipnóticos, mãos geladas e sussurra convites aos mais incautos.
22 - REVELAÇÃO DO ANO - o marceneiro desesperançado decidiu mudar de ramo e de vida. Pelas mãos de seu casal de filhos de 10-12 anos virou pintor, artista de renome nacional e, por fim, criou uma ONG milionária para formar no morro outros tantos "gênios" mirins.
23 - UM ASSASSINO EM POTENCIAL - os passarinhos da garotada do vilarejo estavam sumindo misteriosamente. Era preciso achar o ladrão o mais rápido possível... e matá-lo, se necessário.
24 - JARDIM DE SONHOS - metáfora lírica que versa sobre os amores (platônicos ou verídicos) do Autor quando jovem.
25 - "CONTOS" DE UM CANTO... SÓ! - mantendo o "estilo" iniciado em Tiro e Queda, o conto trata de re-visões do dia-a-dia do homem comum, além de textos nascidos das notas & notícias (re)tiradas de jornais e revistas.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
QUASE NADA... (abertura)
QUASE NADA...
Para que chorar o que passou
e lamentar perdidas ilusões
se o ideal que nos acalentou
renascerá em outros corações.
trecho de "LUZES DA RIBALTA",
(versão de "LIMELIGHT",
de Charles Chaplin)
... no sistema de valores dessa civilização
de sobrevivência compulsiva, o artista é
irrelevante. Êle é encarado como um mero
decorador que nos entretém enquanto
trabalhamos. Como menestrel itinerante, ator,
palhaço ou poeta, êle pode ir por toda parte
porque ninguém o leva a sério.
ALAN W. WATTS
Saia do meu caminho...
eu prefiro andar sozinho,
deixe que eu decida a minha vida.
Não preciso que me digam
de que lado nasce o sol,
porque bate lá meu coração.
BELCHIOR -- trecho da canção
"Comentários à respeito de John"
O livro é como o pólen que se desprega
das flores. Flutua, dança nas mãos do
vento e ninguém pode prever o alcance
de sua fecundação.
JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO
Para que chorar o que passou
e lamentar perdidas ilusões
se o ideal que nos acalentou
renascerá em outros corações.
trecho de "LUZES DA RIBALTA",
(versão de "LIMELIGHT",
de Charles Chaplin)
... no sistema de valores dessa civilização
de sobrevivência compulsiva, o artista é
irrelevante. Êle é encarado como um mero
decorador que nos entretém enquanto
trabalhamos. Como menestrel itinerante, ator,
palhaço ou poeta, êle pode ir por toda parte
porque ninguém o leva a sério.
ALAN W. WATTS
Saia do meu caminho...
eu prefiro andar sozinho,
deixe que eu decida a minha vida.
Não preciso que me digam
de que lado nasce o sol,
porque bate lá meu coração.
BELCHIOR -- trecho da canção
"Comentários à respeito de John"
O livro é como o pólen que se desprega
das flores. Flutua, dança nas mãos do
vento e ninguém pode prever o alcance
de sua fecundação.
JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO
QUASE NADA -- (dedicatórias)
D E D I C O :
À minha querida VIOLETA, bela "lady" canina com quem vivi por treze longosanos. Dócil, alegre, meiga, educada e até resignada na hora dos banhos, que detestava. Este singelo livro é em sua homenagem !
Aos amigos que fiz em minha modesta existência e a todos os que me ajudaram algum dia... e não foram poucos os que o fizeram.Minha vida seria bem diferente sem a presença deles. Sou-lhes eternamentegrato !
Ao meu irmão mais velho Antônio Carlos, a quem devo a oportunidade de viverno Estado do Pará, região incomum e impressionante, onde o impossível acontece a toda hora... e toda espécie de impossível !
Ao amigo paraense, pesquisador e prof. JOAQUIM ARAÚJO, ao qual agradeçoo apoio (inclusive monetário) recebido, que me permitiu participar de diversos concursos nacionais de contos, produção essa que justifica a realização destaobra.
Ao meu irmão gêmeo Sérgio (ou melhor, Renato), cujo esfôrço diário para sustentara família -- num trabalho incansável nas mais diversas atividades -- possibilitoudedicar-me tão somente aos rabiscos que originaram essas mal traçadas linhas. Sei bem o quanto lhe devo! Muito obrigado por tudo!
Aos srs. TAKAOKI NODA & Família, Eduardo & Sofia NAKAMURA (da Fruteira CEASINHA, no bairro Cidade Nova 4, em ANANINDEUA, Pará) com minha gratidão pela extrema consideração em todos os momentos e também pela valiosa ajuda nas situações mais difíceis.
"NATO" AZEVEDO
À minha querida VIOLETA, bela "lady" canina com quem vivi por treze longosanos. Dócil, alegre, meiga, educada e até resignada na hora dos banhos, que detestava. Este singelo livro é em sua homenagem !
Aos amigos que fiz em minha modesta existência e a todos os que me ajudaram algum dia... e não foram poucos os que o fizeram.Minha vida seria bem diferente sem a presença deles. Sou-lhes eternamentegrato !
Ao meu irmão mais velho Antônio Carlos, a quem devo a oportunidade de viverno Estado do Pará, região incomum e impressionante, onde o impossível acontece a toda hora... e toda espécie de impossível !
Ao amigo paraense, pesquisador e prof. JOAQUIM ARAÚJO, ao qual agradeçoo apoio (inclusive monetário) recebido, que me permitiu participar de diversos concursos nacionais de contos, produção essa que justifica a realização destaobra.
Ao meu irmão gêmeo Sérgio (ou melhor, Renato), cujo esfôrço diário para sustentara família -- num trabalho incansável nas mais diversas atividades -- possibilitoudedicar-me tão somente aos rabiscos que originaram essas mal traçadas linhas. Sei bem o quanto lhe devo! Muito obrigado por tudo!
Aos srs. TAKAOKI NODA & Família, Eduardo & Sofia NAKAMURA (da Fruteira CEASINHA, no bairro Cidade Nova 4, em ANANINDEUA, Pará) com minha gratidão pela extrema consideração em todos os momentos e também pela valiosa ajuda nas situações mais difíceis.
"NATO" AZEVEDO
HISTÓRIAS COM SEIVA DE BRASIL
HISTÓRIAS COM SEIVA DE BRASIL
Nelson Hoffmann
Como foi não me lembro, mas contaram-me, há tempos:
- Olha! Tem um cara, lá no Pará, que é fã de tuas letras.
Fã? Essa era boa... Quem seria? Passaram-me nome e endereço. O nome, Cincinato Palmas Azevedo, era-me estranho; mais estranho ainda ficou-me o nome da cidade: Ananindeua.
Em todo o caso... É tão difícil encontrar leitor!
Escrevi-lhe. E foi o desate de um turbilhão. Senti-me, de repente, num redemoinho. Fui envolto em rodopio, eu não sabia o que estava acontecendo. Parecia-me alucinação, eu estava sendo arrastado, tragado, para um mundo inexistente.
Sobre mim desabaram informes, informações, notícias, panfletos, recortes, jornais, revistas, excertos, desenhos, cartuns, fotos, cartões, um mundo fantasmagórico. Velho barranqueiro do Ijuí, eu não concebia o mundo que se me apresentava.
E vieram poemas, poesias, trovas, reportagens, crônicas, contos, tudo instruindo-me sobre uma Amazônia que não viajava na mídia oficial. E tudo era-me enviado por Cincinato Palmas Azevedo, grandíssima parte de sua própria autoria. E o que não era, confirmava o autor.
Cincinato Palmas Azevedo é escritor e assina como "Nato" Azevedo. Carioca de nascimento, perambulou por este país quase inteiro. Vida de andarilho e alma de cigano, tanto rodou por aí que, um dia, foi dar com os costados na longínqua Belém do Grão-Pará. Lá, por endereço, fixou a cidade de Ananindeua, na região metropolitana, onde reside.
A formação literária de "Nato" Azevedo é de mundo e não de academia. Suas leituras são de revistas em quadrinhos e de aventuras e nada têm de canônico. De nossa elite intelectual, simpatiza com Monteiro Lobato, Aluísio Azevedo e alguma coisa de Coelho Neto. Prefere Jorge Amado a Machado de Assis. Deste, no dizer do próprio, pode ser que vá levar alguns volumes em meu esquife, talvez assim...
Assim é "Nato" Azevedo, um escritor brasileiro. Veterano de mil peripécias literárias, e outras nem tanto, o autor está lançando “Quase Nada...” , um livro de contos. Este é uma reunião de alguns dos seus melhores trabalhos, muitos já publicados, acrescidos de um bom número de inéditos.
Os contos de “Quase Nada...” espraiam-se pelo Brasil e não são todos rigorosamente contos. Alguns ingressam no terreno da crônica, outros tecem comentários, terceiros adentram o relato de experiências vividas. Mas, todos são histórias que prendem o leitor até o fim. Esta, aliás, uma característica muito forte: o suspense dos textos, sempre com um impacto final.
As histórias de "Nato" Azevedo podem ser distribuídas por três cenários: a) de fundo histórico, b) de ambientação urbana e c) de paisagem amazônica. Alguns outros extrapolam a divisão, o que serve para confirmar a base.
As histórias que visitam a nossa História desenvolvem-se em períodos bem diversos e focam assuntos os mais diferentes. Assim, temos o canibalismo e a atuação missionária dos padres em “Manjar Celestial”, o surgimento do nome da cidade mineira de Juiz de Fora em “O Impasse”, a escravidão e a mineração em “Bené, o Dente de Ouro” e outros. E é de chamar a atenção para “O Sal da Terra”, um belo relato da simbiose terra-gente do Grão-Pará, centrada na árvore-símbolo, a castanheira.
Já na ambientação urbana, as histórias acontecem, de preferência, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. A ação de “Manchete Fatal” desloca-se, em movimento de vaivém entre as duas cidades, o que é fundamental ao desfecho. “A Última Chance”, por sua vez, acontece inteira em São Paulo e foca um problema tão nosso conhecido: a febre das loterias, horóscopos, cálculos, rezas, palpites, benzeduras, mandingas, tudo por uma chance na sorte grande.
Mas, “Um Sinal do Além” e “Cinema de Vanguarda” são destaques da vida urbana carioca. Situadas na década de 70, tem-se reflexos, conseqüências e produtos do regime político implantado em 1964, do início da tevê, da agonia do cinema nacional. A proliferação de seitas religiosas, a massificação da comunicação, a resistência por uma arte nacional é um pouco do muito que aparece. E a total ignorância de nossas elites na apreciação de uma obra artística é desmascarada em “Revelação do Ano”.
O melhor da obra de "Nato" Azevedo, porém, está nas histórias que envolvem cenários amazônicos. Ali o autor é vigoroso e está em casa. Como vem do Sul, tem olhos para ver e ouvidos para ouvir e nariz para cheirar e tato para apalpar e gosto para sentir nuanças que o caboclo da aldeia não percebe. Como tem vida e mundo no lombo e muita argúcia na cabeça, o autor nos conta histórias que raiam pelo absurdo e são de pura humanidade.
A gente sente uma gratificação toda especial com o final feliz de “Um Presente Especial”; participa da epopéia dos transportes rodoviários em plena selva amazônica, com “O Fantasma do Sino”; e sofre a angústia de quem mora nessa “Paisagem Amazônica”.
E o ser humano integra-se/desintegra-se, funde-se inteiramente com a selva, a natureza amazônica, em “O Olhar Penetrante da Noite”. A Amazônia é um redemoinho, um turbilhão que arrebata, prende e engole.
Toda essa temática é trabalhada em estilo intencional do autor. Nada de inovações ou pirotecnias. Sempre um modo narrativo tradicional, naturalista: a interação meio x homem, homem x meio. A realidade é subvertida de forma irônica e, por vezes, acusatória. Mas, é sempre muito brasileira, com seiva de Brasil.
Ainda, um último detalhe: o curioso processo de metalinguagem que atravessa todos os textos. O processo diverte e chama a atenção, servindo de esclarecimento, alerta ou questionamento. É uma bem-humorada e inteligente maneira de prender o leitor e instigá-lo a reflexões não previstas.
"Nato" Azevedo arrastou-me para o seu mundo. Fui sugado como por um redemoinho. E mergulhei numa Amazônia devastada, sofrida, explosiva, primitiva, exuberante, selvagem, judiada, desmatada...
Hoje, "Nato" Azevedo tem um fã em mim.
Autor de "EU VIVO SÓ TERNURAS"
E-mail: nelsonhoffmann@yahoo.com.br
C O N F I T E O R (à guisa de prefácio)
C O N F I T E O R (à guisa de prefácio)
O Latim, tido como língua morta, continua mais vivo do que nunca. Apesar da nossa santa Madre Igreja -- num de seus momentos de "maria vai com as outras" -- tê-lo eliminado de seu dia-a-dia, o que restou do idioma continua por aí, como um fantasma redivivo, a nomear novas plantas e seres, estrelas e remédios e, aqui e ali, em obras literárias ou processos criminais. Um dos muitos contracensos de uma comunidade cada vez mais global.
Sinceramente, não sei porque escrevo! Alguns dos grandes nomes de nossas letras já afirmaram que o fazem por angústia. Outros mais, quando o momento de inspiração os invade e a vontade de escrever se torna irresistível.
Affonso Romano de Sant'Anna deixou para a posteridade definição magistral:
"quem escreve, o faz para não morrer; quem lê, lê para imaginar que vive" !
De minha parte, o que me move são dois sentimentos tanto opostos quanto indistintos. O intuito, mesmo velado, de apontar êrros, de corrigir o Mundo e, paralelamente, um desejo sutil de "vendetta" diante da impotência (ou inconsciência) geral frente aos fatos da Vida.
Escrever se torna bem menos prazer e lazer do que desabafo indignado (e, por vezes, virulento) por tantos "sapos" e "pepinos" que o Destino nos põe no prato da existência, mesmo quando se está farto.
Rezam as filosofias que o Mundo segue como deve ser -- apesar das guerras, da miséria e das perversões humanas -- mesmo que assim não nos pareça.
Em Belém do Pará um jovem amigo poeta me declarou belo axioma, há mais de dez anos e que jamais esqueci... "o Mal por si mesmo se destrói!" (No caso dele acabou sendo verdade!)
Infelizmente, não tenho passividade ou paciência suficientes para esperar as coisas mudarem por si. Apresento-me, sempre que posso, para dar uma "mãozinha"... empurrando o carro da História e/ou dos desatinos da humanidade um pouco mais rápido para o abismo.
Coisa de libriano perfeccionista, com lua negra (Lilith) em Leão, Dragão de água no horóscopo chinês e pedra e água são duas constantes em nossa vida, como bem percebeu meu irmão gêmeo Renato, espécie de místico anarquista.
Por que escrevo... quando na realidade deveria estar procurando um trabalho ou uma ocupação que me desse o sustento? Por que escrevo... se acredito, como o personagem de William Shakespeare, que "palavras são palavras e nada mais que palavras"?
Por que escrevo... se sei que os livros não mudam sequer as pessoas, quanto mais esse vasto e miserável Mundo? Por que escrevo... se ninguém (exceto eu mesmo) me lê, como sucedeu a tantos antes de mim, como sucederá "per omnia saecula" se o Mundo continuar seguindo seu imutável curso?
Sinceramente, não sei porque escrevo !
Há, é claro, a satisfação do texto bem escrito, do conto bem acabado, com comêço e meio... que o fim é sempre uma incógnita, mesmo para o escritor, acreditem se quiserem.
Pode existir até uma pontinha de inútil vaidade, quando momentâneamente se atinge a tão almejada perfeição, mas tudo acaba logo que se fecha a gaveta, assim que guardamos a pasta de originais, registro & memória que só o Tempo tocará dali por diante, com seus dedos apodrecidos.
Iniciei muito jovem, escrevendo meras cartas de poucas linhas, elogiando a programação das raras Rádios rockeiras do Rio de Janeiro (eram os dourados anos 70!) e fazendo pedidos. Adiante, passaria a me dirigir a grandes empresas cariocas (com cartas redigidas à mão em folha de caderno, imaginem!) solicitando investirem mais no lazer de crianças e jovens das praias da zona sul.
Quando tive um amigo assassinado na saída de um baile funk -- isto em 1977 ! -- escrevi aos grandes jornais alertando para a crescente violência de seus frequentadores e cobrando alguma atitude.
Não sei o que fez de mim um escritor... e numa família em que todos (exceto minha falecida tia Anita) veem a atividade como ato inútil, coisa de preguiçoso, tarefa "que não dá camisa a ninguém".
Trago gravada, entre as imagens da infância, a de meu inchado e avermelhado primo Joãozinho, espécie de cigano andarilho menosprezado por quase todos, escrevendo compulsivamente em blocos de folha de papel grosseiro, dia após dia, só Deus sabe o quê. Ou, então, tocando "violão" com uma cadeira ao colo. Pobre amigo... morreu de cirrose hepática, mas eu já não estava mais na cidade.
Para o bem ou para o mal a AMAZÔNIA -- seja lá o que o têrmo signifique -- fez de mim um escritor. Numa terra com raras empresas de porte e cujo comércio é essencialmente familiar (com emprêgo de parentes próximos e seus agregados) nos sobra a todos um imenso tempo para não se fazer nada.
Quem não é empregado de alguma entidade oficial (federal, estadual ou municipal) está literalmente "na rua da amargura", vivendo de expedientes, com ou sem aspas, muito embora numa terra tradicionalmente "de meio expediente" o "dolce far niente" é geral depois da "meia hora", como se diz por aqui. (Bem, após os dois parágrafos acima, sei que já perdi quase todos os leitores fanáticamente paraenses !)
De qualquer forma, bom, razoável ou ruim, sou um escritor... que me importa se isso pouco ou nada signifique? E, no coração da Amazônia, cuja "capital" é toda arborizada com exemplares que a floresta original não possui, faço destas páginas meu "confiteor", numa visão que pode parecer a alguns parcial ou apressada mas que é visceral e legítimamente minha, sem empréstimo de opiniões (ou de obras) alheias.
Um trabalho quase tão árido quanto esta devastada Amazônia, decantada em prosa e verso, cuja exuberância se imagina mas não se vê.
Sou um escritor amazônico, quer isso me agrade ou não, mas (ainda) não amazônida porque esta agradável vivência próximo (ou dentro) de um pará-íso se transforma, graças a um regionalismo equivocado, numa existência onde as decepções, como as chuvas locais, são diárias, com hora marcada e não falham jamais.
Todo e qualquer escritor teve um guia, alguém mais experiente a lhe apontar caminhos, espécie de "pai" intelectual. Rendo, pois, minhas homenagens ao professor vigiense e poeta maior da "cidade das águas", JOSÉ ILDONE, lá onde a Amazônia existe de fato e de direito e em cujo lugarejo Itaporanga -- pedra bonita, segundo seus legítimos habitantes -- dei meus primeiros passos literários, à sombra de um sem-número de palmeiras e de árvores frutíferas de toda espécie.
Nascido e criado no ex-Morro dos Cabritos, hoje rua Euclides da Rocha, na zona sul do Rio de Janeiro, fui levado com 5 ou 6 anos para a casa dos meus tios, na calma e simpática Rio Negro, no sul do Paraná, com imenso rio de águas marrons e belas pontes de ferro.
Estudamos, eu e meu irmão Renato, o curso primário num colégio de freiras, no extremo norte de Santa Catarina, num vilarejo "polonês" no cume de enorme montanha (Alto Paraguaçu), situado no município de Itaiópolis.
Enfim, uma vida inteira quase como cigano, entre Rio e rios ("parás"), entre águas e pedras ("itas"), entre morros e planícies, entre o sul e o norte como bússola enlouquecida. E, enquanto trabalhava na sede carioca da MRN - Mineração Rio do Norte (viram, eu não disse ?!) me veio repetidas vezes o convite de meu irmão mais velho para vir morar em Belém... do Pará, dos rios, das águas e das pedras.
Aqui estou... e, este livro, que camufla em despretenciosos "contos" muito mais da minha vida (e dessa estupefaciente experiência) do que eu gostaria, tem a decidida intenção de registrar o sucedido.
Claro está que, como criador, é meu dever moldar o real, dar-lhe nova roupagem e "com a liberdade que o devaneio proporciona" (obrigado, João de Jesus Paes Loureiro!) redirecionar uma realidade mesquinha e por vezes angustiante para o terreno da arte literária, da metáfora, do imaginário.
É do poeta insígne de "Altar em Chamas", mais amazônida do que nunca, a explicação definitiva: "Na cultura paraense-amazônica o ilógico explica o lógico, o possível revela o real, o devaneio torna-se meditação, a relação maravilhada com as coisas converte-se em método criador. A arte no Pará é o lugar privilegiado dessa TRANSREALIDADE, que está no âmago de nosso pensamento, como coincidência de opostos: do real e o imaginário. (...) A realidade torna-se incrível e o imaginário credível. Vivendo no particular, temos o prazer do desmedido". (in "Arte e Desenvolvimento", pag. 20, Cadernos IAP, vol. 2, Belém/1999)
"QUASE NADA..." é um modesto escrito, sem pretensão à grande obra literária, de um Autor que só estudou até o 2º ano do antigo Curso Ginasial (agora, 6ª série). Entretanto, nem por isso deixou de aprender na "universidade da vida", que dá conhecimentos mas não confere diplomas.
Hoje, sou espécie de coruja de olhos arregalados para os seres (e os fatos) da Vida, tentando se possível fazer alguma prêsa. Se você vai aventurar-se por entre estas "espinhosas" páginas esteja atento mas, mesmo assim, chegará ao fim da jornada com alguns "arranhões".
Em certos casos, deixará pelo caminho algum pedaço... do cérebro ou do coração.Siga em frente! Contudo, cuidado com os cachorros... êles costumam ser mais humanos que seus donos e isso é insuportável !
ANANINDEUA, Pará, BRASIL, dezembro de 2000
"NATO" AZEVEDO (poeta e escritor)
O Latim, tido como língua morta, continua mais vivo do que nunca. Apesar da nossa santa Madre Igreja -- num de seus momentos de "maria vai com as outras" -- tê-lo eliminado de seu dia-a-dia, o que restou do idioma continua por aí, como um fantasma redivivo, a nomear novas plantas e seres, estrelas e remédios e, aqui e ali, em obras literárias ou processos criminais. Um dos muitos contracensos de uma comunidade cada vez mais global.
Sinceramente, não sei porque escrevo! Alguns dos grandes nomes de nossas letras já afirmaram que o fazem por angústia. Outros mais, quando o momento de inspiração os invade e a vontade de escrever se torna irresistível.
Affonso Romano de Sant'Anna deixou para a posteridade definição magistral:
"quem escreve, o faz para não morrer; quem lê, lê para imaginar que vive" !
De minha parte, o que me move são dois sentimentos tanto opostos quanto indistintos. O intuito, mesmo velado, de apontar êrros, de corrigir o Mundo e, paralelamente, um desejo sutil de "vendetta" diante da impotência (ou inconsciência) geral frente aos fatos da Vida.
Escrever se torna bem menos prazer e lazer do que desabafo indignado (e, por vezes, virulento) por tantos "sapos" e "pepinos" que o Destino nos põe no prato da existência, mesmo quando se está farto.
Rezam as filosofias que o Mundo segue como deve ser -- apesar das guerras, da miséria e das perversões humanas -- mesmo que assim não nos pareça.
Em Belém do Pará um jovem amigo poeta me declarou belo axioma, há mais de dez anos e que jamais esqueci... "o Mal por si mesmo se destrói!" (No caso dele acabou sendo verdade!)
Infelizmente, não tenho passividade ou paciência suficientes para esperar as coisas mudarem por si. Apresento-me, sempre que posso, para dar uma "mãozinha"... empurrando o carro da História e/ou dos desatinos da humanidade um pouco mais rápido para o abismo.
Coisa de libriano perfeccionista, com lua negra (Lilith) em Leão, Dragão de água no horóscopo chinês e pedra e água são duas constantes em nossa vida, como bem percebeu meu irmão gêmeo Renato, espécie de místico anarquista.
Por que escrevo... quando na realidade deveria estar procurando um trabalho ou uma ocupação que me desse o sustento? Por que escrevo... se acredito, como o personagem de William Shakespeare, que "palavras são palavras e nada mais que palavras"?
Por que escrevo... se sei que os livros não mudam sequer as pessoas, quanto mais esse vasto e miserável Mundo? Por que escrevo... se ninguém (exceto eu mesmo) me lê, como sucedeu a tantos antes de mim, como sucederá "per omnia saecula" se o Mundo continuar seguindo seu imutável curso?
Sinceramente, não sei porque escrevo !
Há, é claro, a satisfação do texto bem escrito, do conto bem acabado, com comêço e meio... que o fim é sempre uma incógnita, mesmo para o escritor, acreditem se quiserem.
Pode existir até uma pontinha de inútil vaidade, quando momentâneamente se atinge a tão almejada perfeição, mas tudo acaba logo que se fecha a gaveta, assim que guardamos a pasta de originais, registro & memória que só o Tempo tocará dali por diante, com seus dedos apodrecidos.
Iniciei muito jovem, escrevendo meras cartas de poucas linhas, elogiando a programação das raras Rádios rockeiras do Rio de Janeiro (eram os dourados anos 70!) e fazendo pedidos. Adiante, passaria a me dirigir a grandes empresas cariocas (com cartas redigidas à mão em folha de caderno, imaginem!) solicitando investirem mais no lazer de crianças e jovens das praias da zona sul.
Quando tive um amigo assassinado na saída de um baile funk -- isto em 1977 ! -- escrevi aos grandes jornais alertando para a crescente violência de seus frequentadores e cobrando alguma atitude.
Não sei o que fez de mim um escritor... e numa família em que todos (exceto minha falecida tia Anita) veem a atividade como ato inútil, coisa de preguiçoso, tarefa "que não dá camisa a ninguém".
Trago gravada, entre as imagens da infância, a de meu inchado e avermelhado primo Joãozinho, espécie de cigano andarilho menosprezado por quase todos, escrevendo compulsivamente em blocos de folha de papel grosseiro, dia após dia, só Deus sabe o quê. Ou, então, tocando "violão" com uma cadeira ao colo. Pobre amigo... morreu de cirrose hepática, mas eu já não estava mais na cidade.
Para o bem ou para o mal a AMAZÔNIA -- seja lá o que o têrmo signifique -- fez de mim um escritor. Numa terra com raras empresas de porte e cujo comércio é essencialmente familiar (com emprêgo de parentes próximos e seus agregados) nos sobra a todos um imenso tempo para não se fazer nada.
Quem não é empregado de alguma entidade oficial (federal, estadual ou municipal) está literalmente "na rua da amargura", vivendo de expedientes, com ou sem aspas, muito embora numa terra tradicionalmente "de meio expediente" o "dolce far niente" é geral depois da "meia hora", como se diz por aqui. (Bem, após os dois parágrafos acima, sei que já perdi quase todos os leitores fanáticamente paraenses !)
De qualquer forma, bom, razoável ou ruim, sou um escritor... que me importa se isso pouco ou nada signifique? E, no coração da Amazônia, cuja "capital" é toda arborizada com exemplares que a floresta original não possui, faço destas páginas meu "confiteor", numa visão que pode parecer a alguns parcial ou apressada mas que é visceral e legítimamente minha, sem empréstimo de opiniões (ou de obras) alheias.
Um trabalho quase tão árido quanto esta devastada Amazônia, decantada em prosa e verso, cuja exuberância se imagina mas não se vê.
Sou um escritor amazônico, quer isso me agrade ou não, mas (ainda) não amazônida porque esta agradável vivência próximo (ou dentro) de um pará-íso se transforma, graças a um regionalismo equivocado, numa existência onde as decepções, como as chuvas locais, são diárias, com hora marcada e não falham jamais.
Todo e qualquer escritor teve um guia, alguém mais experiente a lhe apontar caminhos, espécie de "pai" intelectual. Rendo, pois, minhas homenagens ao professor vigiense e poeta maior da "cidade das águas", JOSÉ ILDONE, lá onde a Amazônia existe de fato e de direito e em cujo lugarejo Itaporanga -- pedra bonita, segundo seus legítimos habitantes -- dei meus primeiros passos literários, à sombra de um sem-número de palmeiras e de árvores frutíferas de toda espécie.
Nascido e criado no ex-Morro dos Cabritos, hoje rua Euclides da Rocha, na zona sul do Rio de Janeiro, fui levado com 5 ou 6 anos para a casa dos meus tios, na calma e simpática Rio Negro, no sul do Paraná, com imenso rio de águas marrons e belas pontes de ferro.
Estudamos, eu e meu irmão Renato, o curso primário num colégio de freiras, no extremo norte de Santa Catarina, num vilarejo "polonês" no cume de enorme montanha (Alto Paraguaçu), situado no município de Itaiópolis.
Enfim, uma vida inteira quase como cigano, entre Rio e rios ("parás"), entre águas e pedras ("itas"), entre morros e planícies, entre o sul e o norte como bússola enlouquecida. E, enquanto trabalhava na sede carioca da MRN - Mineração Rio do Norte (viram, eu não disse ?!) me veio repetidas vezes o convite de meu irmão mais velho para vir morar em Belém... do Pará, dos rios, das águas e das pedras.
Aqui estou... e, este livro, que camufla em despretenciosos "contos" muito mais da minha vida (e dessa estupefaciente experiência) do que eu gostaria, tem a decidida intenção de registrar o sucedido.
Claro está que, como criador, é meu dever moldar o real, dar-lhe nova roupagem e "com a liberdade que o devaneio proporciona" (obrigado, João de Jesus Paes Loureiro!) redirecionar uma realidade mesquinha e por vezes angustiante para o terreno da arte literária, da metáfora, do imaginário.
É do poeta insígne de "Altar em Chamas", mais amazônida do que nunca, a explicação definitiva: "Na cultura paraense-amazônica o ilógico explica o lógico, o possível revela o real, o devaneio torna-se meditação, a relação maravilhada com as coisas converte-se em método criador. A arte no Pará é o lugar privilegiado dessa TRANSREALIDADE, que está no âmago de nosso pensamento, como coincidência de opostos: do real e o imaginário. (...) A realidade torna-se incrível e o imaginário credível. Vivendo no particular, temos o prazer do desmedido". (in "Arte e Desenvolvimento", pag. 20, Cadernos IAP, vol. 2, Belém/1999)
"QUASE NADA..." é um modesto escrito, sem pretensão à grande obra literária, de um Autor que só estudou até o 2º ano do antigo Curso Ginasial (agora, 6ª série). Entretanto, nem por isso deixou de aprender na "universidade da vida", que dá conhecimentos mas não confere diplomas.
Hoje, sou espécie de coruja de olhos arregalados para os seres (e os fatos) da Vida, tentando se possível fazer alguma prêsa. Se você vai aventurar-se por entre estas "espinhosas" páginas esteja atento mas, mesmo assim, chegará ao fim da jornada com alguns "arranhões".
Em certos casos, deixará pelo caminho algum pedaço... do cérebro ou do coração.Siga em frente! Contudo, cuidado com os cachorros... êles costumam ser mais humanos que seus donos e isso é insuportável !
ANANINDEUA, Pará, BRASIL, dezembro de 2000
"NATO" AZEVEDO (poeta e escritor)
MANJAR CELESTIAL
MANJAR CELESTIAL
Diz um velho ditado popular que "quem narra um conto aumenta um ponto" mas, no presente caso, aumentei em muito as 3 ou 4 linhas encontradas num velho alfarrábio, que registrava para a posteridade as peripécias e os valorosos feitos de um desbravador jesuita nas plagas até então desconhecidas da Terra do Pau-Brasil... e de outros paus menos votados.
Surgia mais um sol primaveril a aquecer os costados floridos do gigante deitado eternamente em berço esplêndido e o Novo Mundo descobria, boquiaberto de espanto, que havia mais que água e gaivotas ao norte da linha do Equador.
Havia homens barbudos e mal-cheirosos, enrolados em toneladas de tecidos coloridos, vindos meio século antes em enormes "pirogas" movidas a velas & cordames, para convencer canibais em pêlo a cobrir suas "vergonhas" e, por fim, a crer que outro deus maior do que Tupã exigia a construção de imensas ocas onde ninguém morava, além de estátuas e cruzes.
Frei Barnabé Tello recebeu a dádiva divina de ser um dos primeiros missionários a pisar nas terras até então pagãs e começou com presteza uma abençoada catequese que prosperou de tal maneira que quase aposentou o temido pajé da tribo dos patas-chocas, no litoral baiano, reduzido depois da intromissão do jesuíta a mero curandeiro receitador de mezinhas e garrafadas, isto para não ficar desempregado pois a Igreja sempre se preocupou com a classe trabalhadora.
Muita gente na aldeia admirava aquele espantalho esquelético, de olhar perdido na distância, a mesma grosseira e surrada batina o ano inteiro, se sacrificando em prol de todos, sem jamais pensar em si. A taba ficara famosa nas redondezas com a presença e as realizações do sacerdote, algumas curas milagrosas segundo a plebe ignara, além de reformas gerais em tudo.
Contudo, nem todos estavam satisfeitos com o andar... da carruagem, digo, do caraíba invasor, entre êles o velho chefe, tuxaua de muitas luas, o cacique "Raposa Vermelha", infeliz por ver extintos seus mais gratos costumes como o de fazer e beber cauím, andar como Adão no Paraíso (e não com aqueles trapos ridículos), ter várias concubinas, fora a deliciosa tradição de desvirginar cunhãs por diversos machos.
Nayara, filha única e dileta do cacique era um esplendor, deusa feminina e bela, orgulho da tribo, uma amazona completa, guerreira sem igual na região, cantada em verso e prosa. Foi o padre bater os iluminados olhos na beldade e jurar a si mesmo conquistá-la para a seara do Senhor, seu mais agradável troféu a culminar um trabalho de catequese que já durava dez anos.
O frade acompanhara o desabrochar daquela cobiçada flôr das selvas, com o homem dentro de si quase desperto ao admirar as belas formas sendo acariciadas pelas águas, no banho diário no rio da aldeia.
Nestas horas, o crucifixo ardia-lhe sobre o peito hirsuto, enquanto seu voto de castidade naufragava sobre sensuais ondas de pensamentos impuros e desejos inconfessáveis. Nayara não lhe era de todo indiferente, o jesuita servia a seus propósitos de causar ciúmes aos maiorais da tribo, entre os quais estaria seu futuro esposo.
Daí, frequentemente acompanhava o pregador em suas andanças e catequeses, ouvia mortificada a lenga-lenga religiosa e, vez ou outra, frequentava o ritual litúrgico, do qual não entendia patavina. Já Frei Barnabé, fiel a seu juramento, sepultava nos porões do inconsciente o prazer sexual que sua companhia lhe trazia.
Sumiram no horizonte diversos invernos, Nayara casou, teve filhos que o frade batizou com a graça de Deus e, com o falecimento do idoso pai, a temida amazona passou a reinar, assistida pelo marido, que em tudo a ouvia e seguia.
Como primeiro decreto Nayara pôz meia aldeia à disposição do missionário e ela mesma transformou-se na maior das devotas, não perdendo uma missa sequer. O pajé foi "promovido" a varredor de vielas da taba, enquanto a guerreira armava os espíritos para tornar os patas-chocas o terror daquela área.
A pedido do frade, a aldeia encheu-se de gentios capturados em tribos vizinhas e de negros dos primeiros quilombos que o Nordeste viu nascer, todos "empregados" a serviço do Senhor.
Com a força escrava construi-se o primeiro colégio da região -- pago, é claro, e só para os filhos dos "galegos" -- além de uma rendosa usina de açúcar, padaria, hospital, um ferreiro e a suntuosa Matriz, marco da nóvel província, tudo para a glória de Deus.
Até que um dia... um Deus certamente canhoto, escrevendo torto por barrocas linhas, fez com que Nayara voltasse de uma daquelas refregas mortalmente ferida, o fatal curare da flecha assassina a corroer-lhe o último sôpro de vida.
De nada adiantou o emprêgo dos renomados remédios trazidos de Coimbra ou o quinino e a morfina importados de França. Nem as rezas do decrépito pajé, suas defumações e emplastros resolveram qualquer coisa.
Já nos estertores da morte, logo após a extrema-unção, a jovem sussurra ao jesuita seu último pedido, o derradeiro desejo, o testemunho mais sincero:
-- "Meu bom homem, daria tudo o que fui na vida, a fama e as conquistas, o que tenho e o que fiz, trocaria minha fé por um dedinho gordinho de um curumim caraíba bem assado, com ervas aromáticas e pimenta brava. Que o seu Deus me perdoe... é isso o que eu quero"!
O jesuíta deu um urro de estupor, enquanto o céu caía-lhe sobre a encanecida cabeça e o chão lhe faltava sob os maltratados pés. Acordou "lelé", biruta, resmungando frases desconexas em latim, grego e francês.
A balzaquiana Nayara foi sepultada em rica urna funerária, com honras de cacique e tomaram as rédeas do próspero vilarejo indígena o antes desmoralizado pajé e o viúvo da índia. O missionário macambúzio foi posto a correr do local a tacape, a escravaria libertada, tudo o mais destruído e, pouco tempo depois, não havia um só sinal do homem branco na aldeia, exceto um ou outro vocábulo em bom vernáculo.
Quando uma nova caravela aportou à região os silvícolas rasparam os caldeirões enferrujados pelo desuso, fizeram esplêndida recepção aos navegantes com iguarias e frutas e, depois, os exterminaram todos, inclusive uma espécie de pavão bem alimentado que os demais tratavam com cerimônia e ao qual chamavam de "Dom Sardinha".
O ex-bispo ficou para sobremesa e aos canibais empanturrados o "acepipe" caraíba tinha o suave sabor de um manjar celestial.
Nayara, presente em espírito, deliciou-se com a cena !
"NATO" AZEVEDO
Diz um velho ditado popular que "quem narra um conto aumenta um ponto" mas, no presente caso, aumentei em muito as 3 ou 4 linhas encontradas num velho alfarrábio, que registrava para a posteridade as peripécias e os valorosos feitos de um desbravador jesuita nas plagas até então desconhecidas da Terra do Pau-Brasil... e de outros paus menos votados.
Surgia mais um sol primaveril a aquecer os costados floridos do gigante deitado eternamente em berço esplêndido e o Novo Mundo descobria, boquiaberto de espanto, que havia mais que água e gaivotas ao norte da linha do Equador.
Havia homens barbudos e mal-cheirosos, enrolados em toneladas de tecidos coloridos, vindos meio século antes em enormes "pirogas" movidas a velas & cordames, para convencer canibais em pêlo a cobrir suas "vergonhas" e, por fim, a crer que outro deus maior do que Tupã exigia a construção de imensas ocas onde ninguém morava, além de estátuas e cruzes.
Frei Barnabé Tello recebeu a dádiva divina de ser um dos primeiros missionários a pisar nas terras até então pagãs e começou com presteza uma abençoada catequese que prosperou de tal maneira que quase aposentou o temido pajé da tribo dos patas-chocas, no litoral baiano, reduzido depois da intromissão do jesuíta a mero curandeiro receitador de mezinhas e garrafadas, isto para não ficar desempregado pois a Igreja sempre se preocupou com a classe trabalhadora.
Muita gente na aldeia admirava aquele espantalho esquelético, de olhar perdido na distância, a mesma grosseira e surrada batina o ano inteiro, se sacrificando em prol de todos, sem jamais pensar em si. A taba ficara famosa nas redondezas com a presença e as realizações do sacerdote, algumas curas milagrosas segundo a plebe ignara, além de reformas gerais em tudo.
Contudo, nem todos estavam satisfeitos com o andar... da carruagem, digo, do caraíba invasor, entre êles o velho chefe, tuxaua de muitas luas, o cacique "Raposa Vermelha", infeliz por ver extintos seus mais gratos costumes como o de fazer e beber cauím, andar como Adão no Paraíso (e não com aqueles trapos ridículos), ter várias concubinas, fora a deliciosa tradição de desvirginar cunhãs por diversos machos.
Nayara, filha única e dileta do cacique era um esplendor, deusa feminina e bela, orgulho da tribo, uma amazona completa, guerreira sem igual na região, cantada em verso e prosa. Foi o padre bater os iluminados olhos na beldade e jurar a si mesmo conquistá-la para a seara do Senhor, seu mais agradável troféu a culminar um trabalho de catequese que já durava dez anos.
O frade acompanhara o desabrochar daquela cobiçada flôr das selvas, com o homem dentro de si quase desperto ao admirar as belas formas sendo acariciadas pelas águas, no banho diário no rio da aldeia.
Nestas horas, o crucifixo ardia-lhe sobre o peito hirsuto, enquanto seu voto de castidade naufragava sobre sensuais ondas de pensamentos impuros e desejos inconfessáveis. Nayara não lhe era de todo indiferente, o jesuita servia a seus propósitos de causar ciúmes aos maiorais da tribo, entre os quais estaria seu futuro esposo.
Daí, frequentemente acompanhava o pregador em suas andanças e catequeses, ouvia mortificada a lenga-lenga religiosa e, vez ou outra, frequentava o ritual litúrgico, do qual não entendia patavina. Já Frei Barnabé, fiel a seu juramento, sepultava nos porões do inconsciente o prazer sexual que sua companhia lhe trazia.
Sumiram no horizonte diversos invernos, Nayara casou, teve filhos que o frade batizou com a graça de Deus e, com o falecimento do idoso pai, a temida amazona passou a reinar, assistida pelo marido, que em tudo a ouvia e seguia.
Como primeiro decreto Nayara pôz meia aldeia à disposição do missionário e ela mesma transformou-se na maior das devotas, não perdendo uma missa sequer. O pajé foi "promovido" a varredor de vielas da taba, enquanto a guerreira armava os espíritos para tornar os patas-chocas o terror daquela área.
A pedido do frade, a aldeia encheu-se de gentios capturados em tribos vizinhas e de negros dos primeiros quilombos que o Nordeste viu nascer, todos "empregados" a serviço do Senhor.
Com a força escrava construi-se o primeiro colégio da região -- pago, é claro, e só para os filhos dos "galegos" -- além de uma rendosa usina de açúcar, padaria, hospital, um ferreiro e a suntuosa Matriz, marco da nóvel província, tudo para a glória de Deus.
Até que um dia... um Deus certamente canhoto, escrevendo torto por barrocas linhas, fez com que Nayara voltasse de uma daquelas refregas mortalmente ferida, o fatal curare da flecha assassina a corroer-lhe o último sôpro de vida.
De nada adiantou o emprêgo dos renomados remédios trazidos de Coimbra ou o quinino e a morfina importados de França. Nem as rezas do decrépito pajé, suas defumações e emplastros resolveram qualquer coisa.
Já nos estertores da morte, logo após a extrema-unção, a jovem sussurra ao jesuita seu último pedido, o derradeiro desejo, o testemunho mais sincero:
-- "Meu bom homem, daria tudo o que fui na vida, a fama e as conquistas, o que tenho e o que fiz, trocaria minha fé por um dedinho gordinho de um curumim caraíba bem assado, com ervas aromáticas e pimenta brava. Que o seu Deus me perdoe... é isso o que eu quero"!
O jesuíta deu um urro de estupor, enquanto o céu caía-lhe sobre a encanecida cabeça e o chão lhe faltava sob os maltratados pés. Acordou "lelé", biruta, resmungando frases desconexas em latim, grego e francês.
A balzaquiana Nayara foi sepultada em rica urna funerária, com honras de cacique e tomaram as rédeas do próspero vilarejo indígena o antes desmoralizado pajé e o viúvo da índia. O missionário macambúzio foi posto a correr do local a tacape, a escravaria libertada, tudo o mais destruído e, pouco tempo depois, não havia um só sinal do homem branco na aldeia, exceto um ou outro vocábulo em bom vernáculo.
Quando uma nova caravela aportou à região os silvícolas rasparam os caldeirões enferrujados pelo desuso, fizeram esplêndida recepção aos navegantes com iguarias e frutas e, depois, os exterminaram todos, inclusive uma espécie de pavão bem alimentado que os demais tratavam com cerimônia e ao qual chamavam de "Dom Sardinha".
O ex-bispo ficou para sobremesa e aos canibais empanturrados o "acepipe" caraíba tinha o suave sabor de um manjar celestial.
Nayara, presente em espírito, deliciou-se com a cena !
"NATO" AZEVEDO
UM PRESENTE ESPECIAL
UM PRESENTE ESPECIAL
Olhou para as mãos calosas, maltratadas por anos sem fim de luta diária contra o seixo e a lama dos rios, não acreditando no que seus olhos viam. Imaginou o largo sorriso de poucos dentes que se abria na máscara de barro escuro do que fôra seu rosto e espremeu entre os dedos enrugados a bela pepita de muitos quilates que a deusa Fortuna, tanto procurada, acabara de mostrar-lhe.
Enfim, mais de dez anos depois, a confirmação de sua mais acalentada esperança, de sua mais secreta certeza, o término definitivo das agruras, das necessidades todas, das desesperanças que consomem nossas almas e amargam nossas vidas. O sertanejo, barbudo e descarnado, com o peito em fogo e o coração a galope, devolveu o ouro ao lençol pardacento que esconde os mistérios de um rio, temeroso que um servo da cobiça ou um escravo da inveja tivessem visto o tamanho de sua felicidade.
Com o olhar atento a tudo em sua volta "Zé Rai" escutou os céus, o sussurro do vento, os ruuídos da terra, o canto dos pássaros e das águas... agora, era preciso analisar cada passo e cada gesto, repensar cada movimento a ser seguiido. Serra Pelada, próximo dali, lhe ensinara que a felicidade alheia é cálice de fel e a riqueza do vizinho um bem a ser tomado a qualquer custo. Já dizia sua avó que "cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém".
Resolveu, enfim, enterrar a pepita de ouro bruto, com quase um quilo, entre as portentosas raízes de solitária castanheiraà beira-rio plantada, estranho vigia de barcos a motor, modestos "cascos" e ariscos peixes que por lá transitavam vez ou outra.
Marcou bem o local num canto da memória e voltou nervoso e ressabiado para casa, humilde casebre de estacas e palha de anajá, com meia parede de estuque protegendo a intimidade da família, dona "Nicota" e o presente de Deus, anjinho moreno de saia, Kátya Regina.
Quando encostou a "montaria" no arremedo de cais a maré estava baixa. Meteu-se até o joelho no lodaçal, puou a canoa para o seco, emborcou-a amarrada e, sob os olhares curiosos dos poucos que se achavam no minúsculo vilarejo naquela hora, adentrou no barraco.
Dona Anita levantou sobrancelhas com ar interrogativo, "Catita" correu para abraçar o pai e até "Tiquinho", o vira-lata da família em geral desanimado, demonstrou certa alegria.
José Raimundo falou mais alto do que de costume, fingindo desalento:
-- "Me deu um "febrão" danado, "Nicota", não quiz nem ficar mais tempo. Tenho que ir à cidade comprar quinino e umas "pírolas", senão a bandida me joga na rede sem pena".
Almoçou pouco, quase não tocou no prato, a preocupação enchendo todos os espaços vazios no seu corpo. Precisava manter seu achado em segredo, por mais que custasse.
Partiu na hora da sagrada agonia, a sombra da morte a cobrir-lhe os trôpegos passos, apavorado que seu súbito fim sepultasse o belo futuro recém-nascido para êles. Voltou noite alta com a mezinha de costume para combater malária e febre amarela, além de um farnel caprichado que lhe permitiria ficar à modorra por uns bons dias. Não esqueceu do pedido da filhinha... um belo colar "havaiano" de duas longas voltas, cheio de flores de tecido e "pedrinhas" multicores de plástico e de madeira. Mas, só o daria adiante, quando da viagem.
Se a vida é um mar de rosas todo amanhecer é sempre lindo. "Zé Rai" acordou bem disposto, os olhos brilhando e, logo após o café, disse à esposa que iria caçar, sem hora para voltar. Preparou os apetrechos todos, alguns instrumentos extras e até um alvo lençol, surrupiado às escondidasdos guardados da mulher.
Embrenhou-se na mata o mais que pôde, parando aqui e ali para certificar-se de quem ninguém o seguia. Só muito avante tomou o rumo do rio, onde a castanheira amiga protegia seu fabulosos achado. Tornou a embrenhar-se no capão cerrado até solitária clareira, onde passou a esmerilhar a pepita, reduzindo o sólido a pequenas esferas e cubos e recolhendo ciosamente o valioso pó de ouro em um saquinho de couro.
O sol dividiu o tempo em duas partes, crestando peles e cérebros mas "Zé Rai" estava absorto demais em sua faina para perceber o calor infernal. Terminada a tarefa, colocou o resultado nas pontas ôcas de grosso bambu, ocultando tudo sob um tampo de barro. Por fim, limpou das mãos os restos de esmalte colorido, enterrando bem fundo no solo úmido os vários vidrinhos quase vazios. Só então sorriu aliviado, dando um suspiro profundo.
Era hora de voltar... carecia no entanto matar qualquer coisa de pena pois, afinal, êle saíra para caçar e poderia levantar suspeitas se voltasse de mãos vazias. Não lhe foi dificil acertar um dos belos maguaris que faziam a sesta às margens do rio, após lauto "almoço".
Chegou exausto em casa, mais pelo peso do colossal segredo que suportava sozinho, para que todos não corressem perigo de morte. Sussurrou para "Nicota", porque sabia que as paredes têm ouvidos:
-- "Avie essa "penosa" assada para viagem, porque vamos para a pista amanhã bem cedo. "Catita" eu aviso quando fôr a hora de partir".A cara do marido não deixava dúvidas... dera com os costados num veio. Dez anos vivendo e sofrendo juntos transformara o rosto de ambos num livro aberto, que dispensava papalvras.
Dona Anita foi prestes acender uma vela para Santa Rita de Cássia, agradecendo o milagre e pedindo proteção. Naquelas êrmas paragens felicidade e desgraça eram como irmãs gêmeas, uma não vinha sem a outra.
Velaram o sono da filha, ansiosos demais para dormir, os minutos martelando compassados a paciência de cada um, as horas espichando-se noite a dentro como se fosse o princípio dos séculos.
"Zé Rai" acordou a filha com o presente especial, o vistoso colar de pedras novas a substituir o plástico ordinário, tapando a pequenina boca para que não gritasse.
-- "Catita", meu anjo, olhe aqui! Bem do jeito que o papai tinha lhe prometido... demorou, mas 'taí"!
-- "Vige Maria, meu Deus, como é lindo. E ra só um negocinho... nem percisava sê tão bunito"!
-- "Qual o quê, meu tesouro... se tudo correr bem, vou te dar aquela bonecona que fala, lá da Estrela. arrume-se, "gitita", vamos partir já-já"!
Saíram madrugadinha, os poucos viventes que assistiram a cena murmuraram desconfiados, enquanto o trio palmilhava os muitos quilômetros que o separavam do "aeroporto" no coração da amazônica selva, mera reta de pó e poças de lama. Nessa longa viagem é que imperava o perigo e a fervorosa oração de dona Anita visava evitar tal destino.
"Zé Rai" caminhava em silêncio, o coração na boca, pois a filha poderia passar pelo pior, pela má sorte que atingira tantos antes dele, alguns tendo perdido naquela estrada não só o dinheiro e a honra mas também a vida. A família já estava avisada: nenhuma reação, nem um pio de protesto, nada que irritasse o humor dos amigos do alheio. Que se levasse tudo... era mais importante continuarem juntos, vivos !
Nem bem findara seu pensamento quando surge das toiças de matagal diante deles dois meliantes de assustadora figura, "mineiros" do mal saidos das profundas do Inferno. Diz o primeiro:
-- "Ora, ora, ora... aonde vão os pombinhos com tanta pressa"?
-- "Será que estão indo à Caixa depositar algum ouro"?, retruca o outro.
-- "Mas que nada, compadres... vamos só visitar uns parentes lá na cidade", tenta disfraçar "Zé Rai", com um fio de voz e puxando a filha para junto de si, com ar protetor.
-- "Bela "quengazinha" você tem aí, macho; quando é que ela vai lá prá "casa de Madame"? Olha, eu quero inaugurar a "bichinha" !
José Raimundo ferveu de ódio incontido nos seus brios de pai amoroso. Com muito custo "Nicota" o impediu de praticar uma besteira e, tomando a pulso a situação, disse-lhes:
-- "Levem o que quiserem mas, pelo amor de Deus, não nos façam mal"!
Os salteadores entreolharam-se e depois, aproximando-se das vítimas, apalparam "Zé Rai". Em poucos instantes deram com a bolsinha de couro, com as faíscas de ouro, escondida no baixo-ventre de José Raimundo, sob a esgarçada cueca. Deram vivas entre sí, gargalharam, deduzindo que em algum canto da tralha que traziam havia bem mais.
O assaltante com cara de Satanás retirou do bolso afiada navalha e, com ar sugestivo, limpando o canto das imundas unhas, perguntou:
-- "Então, mestre, vai dizer logo onde está o grosso ou quer que o mano abra outra boca abaixo do queixo... ai da havaianinha com esse lindo colar, "vizinho"? José Raimundo estremeceu pois o presente dado à filha era algo sagrado, seu único elo com Kátya Regina na Terra, nem por um segundo se arriscaria a perdê-lo. Confessou entre soluços, a voz embargada pela decepção, o desgosto amargando cada sílaba, que o resto do ouro estava dentro do frango assado, camuflado em meio à farofa de ovo.
Levaram-lhe tudo, até mesmo os suados trocados que pagariam a breve viagem dos três à cidade próxima, nascida do nada em poucos dias graças a febre da fortuna fácil. Sentados no barranco à beira da estrada, "Zé Rai" consolou-as declarando:
-- "Está decidido, vamos assim mesmo! Vocês precisam se distrair para esquecer o susto! O "seu" Richardes me cede as passagens de avião fiado, êle já me fez isso antes. Égua, sô, vam'bora" !
Para "Catita" o vilarejo desordenado e barulhento era coisa de outro mundo, um espanto, um troço que só haveria na Lua, sabe Deus onde mais. Dona Anita analisava com frieza o lugar; comera o pão que o diabo amassou em cidade semelhante, antes que José Raimundo tramasse sua fuga de um dos muitos mafuás dominados com mão de ferro por cafetinas balzaquianas apelidadas pela "homarada" de... "madames".
Estava profundamente triste com o infortúnio do marido, cujos sonhos foram degolados pelo fio cobarde de uma navalha,. "Zé Rai" parecia ter se recuperado bem do trágico golpe do destino.
Como o comércio local funcionava quase exclusivamente à base de "cadernetas" e vendas fiado, êle pode tomar sorvetes com a família e passear pelas redondezas até que a Caixa abrisse as portas, pontualmente às 10 horas.
Levou ambas ao Banco, oásis refrigerado e celestialmente limpo, onde sentaram-se sobre nuvens, digo, poltronas. Quando o pai pediu à filha seu belo colar, dona Anita protestou com veemência:
-- "Zézito, meu nêgo, você enlouqueceu de vez? Ela acabou de ganhar a jóia e você já quer dar fim no presente"?
-- "Confie em mim, "Nicota", sei o que estou fazendo. "Catita", minha flor, eu preciso de teu colar agora"!
De olhos arregalados, a menina concluiu que, se sua mãe aceitara a decisão do marido, só lhe restava anuir ao pedido do pai, cujo tom de voz não admitia réplica. Com o badulaque nas mãos, dirigiu-se ao setor de pesagem de ouro bruto, pepitas e ouro em pó.
-- "O que é isso, meu camarada, algum tipo de brincadeira"?!, perguntou o funcionário, mirando "Zé Rai" com ar interrogativo.
-- "Por favor, quebre as "pedrinhas" coloridas do colar, porque é tudo de ouro do melhor quilate"!
Juntou gente de todo canto para ver a novidade, a Caixa quase parou para que admirassem o belo estratagema usado por José Raimundo para trazer com sucesso sua pequena fortuna até a cidade. Virou herói por um dia, almoçou de graça com a família, foi apadrinhado e elogiado por quantos souberam do "causo", que voou Estado afora como periquitos na chegada do verão.
Na manhã seguinte "Zé Rai" voltou de "voadeira" ao casebre que os acomodara todo aquele tempo. "Tiquinho" estava pele e osso, morto de saudade de "Catita" mas atento a tudo e guardando como podia a casa e as coisas da família.
Levou só o que era importante: fotos, lembranças várias, o vestido de noiva de "Nicota", quadros e poucas coisas mais. O resto era de quem quizesse ou pudesse pegar. Saiu em silêncio, sem nenhum adeus, pois quem ficava estava cumprindo seu tempo de purgatório aqui mesmo na Terra.
O "dotô" José Raimundo é hoje feliz fazendeiro nas Minas (epa!) Gerais, dona Anita remoçou vários anos e a jovem e esbelta Kátya Regina guardará para sempre a enorme boneca da Estrela que fala "mamã", fecha os olhinhos, mama e até faz "pipi" se a dona dela quizer.
"Tiquinho" ficou irreconhecível, mais parecendo um leitãozinho cevado, só que "com pernas de pau".
"NATO" AZEVEDO
O IMPASSE
O IMPASSE
Era um tempo muito antigo e, meninote ainda, de muito pouco me recirdo. As lembranças, qual plangente carro de boi, transpõem as barreiras do Tempo, transportando o Passado para diante de meu translúcido olhar.
Lá está nossa família reunida ao redor da modesta fogueira, rostos brilhantes sorvendo ansiosos cada palavra do vovô, portento negro que já fôra escravo e trazia à vida os muitos "causos" soterrados pelo caminhar das eras. O gélido ventos das "geraes" os mantém atentos e até os seres noturnos da mãe-natureza parecem calar para não atrapalhar o relato.
Belos tempos aqueles... a cavalhada e as Folias de Reis eram agradáveis obrigações e o cavalo o meio mais comum de transporte. Esse nosso século de guerras & outras tragédias mal começara e o lampião iluminava casas e ruas.
Juiz de Fora era pouco mais que um vilarejo e o modesto caminho do ouro que outrora fez a fortuna (ou a desgraça) de tantos metamorfoseara-se na esplendorosa Avenida Rio Branco.
...............................................
Eis-me ao pé do lume, de rosto afogueado, a interpelar vovô como surgira o nome da Cidade, onde nasceu tal título. Êle esquivou-se do encargo e, ademais, já passara de muiro a hora de criança ir para a cama mas, diante da insistência geral, rendeu-se a meu pedido.
E começou a narrar lá do seu jeito negro, apostrofando verbos, "comendo" sílabas, reinventando palavras.
-- "É uma história muito longa... Juiz de Fora era só um pedaço de terra sem nome sob as vistas de Deus-Pai Todo Poderoso, pelos idos de 1800 e tal, um sitiozinho, um distrito ou comarca, sei lá, de Barbacena ou de outra cidade próxima. A igrejinha local era o centro de tudo, numa época (que não volta mais) onde o vigário era a um só tempo pai, juiz, advogado, professor e até coveiro, fazia leis, distribuía justiça e resolvia ou decidia quase tudo na vida dos paroquianos.
Mas, como um dia a casa cai, apesar da respeitosa insistência de suas beatas esposas, dois fazendeiros decidiram dar às costas aos palp..., digo, aos conselhos do sr. vigário, sexagenário europeu de sotaque carregado e cumprimentos em latim.
O motivo da contenda era o Brejo das Almas, um charco de pouca valia bem por detrás da Matriz e que se alongava entre as propriedades do abastado fazendeiro "Zé Rico" e do modesto sitiante João "Tutu", apelido este herdado a partir das prendas culinárias da esposa.
Por razões diversas ambos queriam a área, espécie de terra de ninguém. O vigário sonhara intermediar a questão justo para pleitear dos dois uma nêsga de chão para a Igreja, um pátio interno, quem sabe. Agora, a vaca fôra literalmente pro brejo, pois os "condenados" exigiam, de per si, um... juiz de fora.
Estava armado o impasse... os litigantes bateram pé e não houve reza, novena ou promessa que os demovesse daquele propósito.
-- "Juiz de fora"... bradava "Zé Rico", com um sorriso esperto e a idéia fixa de subornar o dito-cujo.
-- "Ôme, pr'arresorvê esse angú só mêrmo um joiz de fora, sô"!, retrucava João "Tutu", imaginando que sua honrada pobreza traria o juiz para o seu lado. Tanto a comunidade fofocou, tanto se comentou o assunto que a notícia do arranca-rabo espalhou-se e, eis que num belo dia, aporta ao vilarejo nada mais nada menos que... um juiz de paz.
Veio em luxuoso cabriolé de cavalo ajaezado, vestido com cerimônia, de fraque, vistosa cartola, polainas sobre lustroso calçado e portando um Roskoph de ouro puro, preso com estudada displiscência ao cinto (na época, correia) da calça de linho inglês. Como de praxe, visitou o Vigário, autoridade mor da região e, na rápida troca de olhares, o vivido sacerdote estremeceu.
Já o precavido homem da lei abaixou convenientemente a aba da cartola até a ponta do nariz e despediu-se do pároco, sem mais delongas. Visitou em separado cada um dos contendores, reuniu-se depois com ambos, regalou-se à farta, repousou na casa de um e de outro e, após alguns ótimos dias, pediu 48 horas para dar a decisão final.
Precisava analisar cada lado, o problema era delicado. Mal acabou de falar, sumiu. "Zé Rico" e João "Tutu" passaram várias noites em claro antes de ter novamente notícias do doutor Kaff Aggesti P. Lantra -- assim se chamava o "janota" de mãos bem cuidadas e olhar ladino -- só que êle traziauma escritura de posse de terras devolutas do Império (era 1835 !) em seu próprio nome e referente justamente ao Brejo das Almas.
Para acalmar os ânimos e evitar uma verdadeira batalha campal o pároco viu-se obrigado, muito a contragôsto, a acompanhar o espertalhão até a casa dos desolados fazendeiros, quando estes tomaram pé da inusitada situação.
Por fim, o visitante, dono legítimo e inconteste da gleba, propoz vendê-la aos dois conforme suas posses, o qual foi aceito. Desde então "Zé Rico" e João "Tutu" viraram motivo de chacota de velhos e jovens que, logo que os viam, gritavam à sorrelfa:
-- "Juiz de fora... juiz de fora" !
Sendo assim, quando tempos depois fundou-se a cidade, não ocorreu a ninguém outro nome. Eis como nasceu... JUIZ DE FORA !
-- "Bem, minha gente, é tarde... com sua licença eu vou dormir, que amanhã é dia de branco"!
E vovô, apoiando-se em sua inseparável bengala, sumiu na penumbra do varandão mal iluminado.
"NATO" AZEVEDO
(NOTA: o Autor agradece penhoradamente a prestimosa colaboração do sr. ANTÔNIO CARLOS DUARTE, do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora/MG.)********************************************
O texto acima foi Vencedor (Medalha de Prata) no I Concurso de Contos da Academia de Letras da Manchester Mineira, em setembro de 1999.
Era um tempo muito antigo e, meninote ainda, de muito pouco me recirdo. As lembranças, qual plangente carro de boi, transpõem as barreiras do Tempo, transportando o Passado para diante de meu translúcido olhar.
Lá está nossa família reunida ao redor da modesta fogueira, rostos brilhantes sorvendo ansiosos cada palavra do vovô, portento negro que já fôra escravo e trazia à vida os muitos "causos" soterrados pelo caminhar das eras. O gélido ventos das "geraes" os mantém atentos e até os seres noturnos da mãe-natureza parecem calar para não atrapalhar o relato.
Belos tempos aqueles... a cavalhada e as Folias de Reis eram agradáveis obrigações e o cavalo o meio mais comum de transporte. Esse nosso século de guerras & outras tragédias mal começara e o lampião iluminava casas e ruas.
Juiz de Fora era pouco mais que um vilarejo e o modesto caminho do ouro que outrora fez a fortuna (ou a desgraça) de tantos metamorfoseara-se na esplendorosa Avenida Rio Branco.
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Eis-me ao pé do lume, de rosto afogueado, a interpelar vovô como surgira o nome da Cidade, onde nasceu tal título. Êle esquivou-se do encargo e, ademais, já passara de muiro a hora de criança ir para a cama mas, diante da insistência geral, rendeu-se a meu pedido.
E começou a narrar lá do seu jeito negro, apostrofando verbos, "comendo" sílabas, reinventando palavras.
-- "É uma história muito longa... Juiz de Fora era só um pedaço de terra sem nome sob as vistas de Deus-Pai Todo Poderoso, pelos idos de 1800 e tal, um sitiozinho, um distrito ou comarca, sei lá, de Barbacena ou de outra cidade próxima. A igrejinha local era o centro de tudo, numa época (que não volta mais) onde o vigário era a um só tempo pai, juiz, advogado, professor e até coveiro, fazia leis, distribuía justiça e resolvia ou decidia quase tudo na vida dos paroquianos.
Mas, como um dia a casa cai, apesar da respeitosa insistência de suas beatas esposas, dois fazendeiros decidiram dar às costas aos palp..., digo, aos conselhos do sr. vigário, sexagenário europeu de sotaque carregado e cumprimentos em latim.
O motivo da contenda era o Brejo das Almas, um charco de pouca valia bem por detrás da Matriz e que se alongava entre as propriedades do abastado fazendeiro "Zé Rico" e do modesto sitiante João "Tutu", apelido este herdado a partir das prendas culinárias da esposa.
Por razões diversas ambos queriam a área, espécie de terra de ninguém. O vigário sonhara intermediar a questão justo para pleitear dos dois uma nêsga de chão para a Igreja, um pátio interno, quem sabe. Agora, a vaca fôra literalmente pro brejo, pois os "condenados" exigiam, de per si, um... juiz de fora.
Estava armado o impasse... os litigantes bateram pé e não houve reza, novena ou promessa que os demovesse daquele propósito.
-- "Juiz de fora"... bradava "Zé Rico", com um sorriso esperto e a idéia fixa de subornar o dito-cujo.
-- "Ôme, pr'arresorvê esse angú só mêrmo um joiz de fora, sô"!, retrucava João "Tutu", imaginando que sua honrada pobreza traria o juiz para o seu lado. Tanto a comunidade fofocou, tanto se comentou o assunto que a notícia do arranca-rabo espalhou-se e, eis que num belo dia, aporta ao vilarejo nada mais nada menos que... um juiz de paz.
Veio em luxuoso cabriolé de cavalo ajaezado, vestido com cerimônia, de fraque, vistosa cartola, polainas sobre lustroso calçado e portando um Roskoph de ouro puro, preso com estudada displiscência ao cinto (na época, correia) da calça de linho inglês. Como de praxe, visitou o Vigário, autoridade mor da região e, na rápida troca de olhares, o vivido sacerdote estremeceu.
Já o precavido homem da lei abaixou convenientemente a aba da cartola até a ponta do nariz e despediu-se do pároco, sem mais delongas. Visitou em separado cada um dos contendores, reuniu-se depois com ambos, regalou-se à farta, repousou na casa de um e de outro e, após alguns ótimos dias, pediu 48 horas para dar a decisão final.
Precisava analisar cada lado, o problema era delicado. Mal acabou de falar, sumiu. "Zé Rico" e João "Tutu" passaram várias noites em claro antes de ter novamente notícias do doutor Kaff Aggesti P. Lantra -- assim se chamava o "janota" de mãos bem cuidadas e olhar ladino -- só que êle traziauma escritura de posse de terras devolutas do Império (era 1835 !) em seu próprio nome e referente justamente ao Brejo das Almas.
Para acalmar os ânimos e evitar uma verdadeira batalha campal o pároco viu-se obrigado, muito a contragôsto, a acompanhar o espertalhão até a casa dos desolados fazendeiros, quando estes tomaram pé da inusitada situação.
Por fim, o visitante, dono legítimo e inconteste da gleba, propoz vendê-la aos dois conforme suas posses, o qual foi aceito. Desde então "Zé Rico" e João "Tutu" viraram motivo de chacota de velhos e jovens que, logo que os viam, gritavam à sorrelfa:
-- "Juiz de fora... juiz de fora" !
Sendo assim, quando tempos depois fundou-se a cidade, não ocorreu a ninguém outro nome. Eis como nasceu... JUIZ DE FORA !
-- "Bem, minha gente, é tarde... com sua licença eu vou dormir, que amanhã é dia de branco"!
E vovô, apoiando-se em sua inseparável bengala, sumiu na penumbra do varandão mal iluminado.
"NATO" AZEVEDO
(NOTA: o Autor agradece penhoradamente a prestimosa colaboração do sr. ANTÔNIO CARLOS DUARTE, do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora/MG.)********************************************
O texto acima foi Vencedor (Medalha de Prata) no I Concurso de Contos da Academia de Letras da Manchester Mineira, em setembro de 1999.
quarta-feira, 22 de abril de 2009
TIRO E QUEDA / QUEDA E TIRO
TIRO E QUEDA
Raimundo Nonato era descendente de um povo que, geração após geração, "nordestinizou" aquela densa região, transformando-a quase toda num deserto.
Êle mesmo, com o espírito da caatinga a bradar dentro de si, não era muito "chegado" em florestas. Árvore para êle era só dinheiro ou, no máximo, cerca, carvão e, principalmente, travessas de sustentação das casas,
Num belo dia ensolarado, a canícula a cozer-lhe os miolos, saiu esbaforido do casebre de estuque e palha, voltando horas depois com um caríssimo "bonsai", que dispôs sobre o tronco podre de colossal samaumeira que um dia habitou soberana seu quintal.
Com os dedos da mãozarra à sombra do minúsculo arbusto, agradeceu aos céus por aqueles instantes de prazer.
Não era uma sexta-feira 13 mas 16, do azíago mês de cachorro louco, o ano de 61 quase no fim. Desempregado e aniversariando naquela data, João “Cabra da Peste” – leonino do 3º decanato – acordou sobressaltado, num barraco no Morro da Formiga.
Suando frio, confessou à sua fiel “Amélia” que tivera outro daqueles pesadelos... gigantesco leão a perseguir-lhe os passos (e os gritos) por toda a savana africana.
-- “Janjão”, meu bem, será que vais torrar de novo a “grana” do nosso almoço no jôgo do bicho ?!
-- Vou, nêga, um dia acerto esse leão de jeito... só assim a gente sai da lama. Despediu-se com um “dominus vobiscum” (adorava latim) e saiu.
Dito e feito, acertou no milhar... Voltou para casa com o coração aos pulos, ele aos saltos no meio da avenida, desligado do mundo.
-- Hei, cuidado com o carro... (carro? que carro?! paft-pum !!!) E lá se foi dinheiro para todo lado, com o corpo estendido no chão, desconjuntado e moribundo.
-- Anotaram a chapa do veículo sim e está com o guarda... L-E-O 1661! Do cara não sobrou quase nada, ficou igual cabra que leão “janta” na selva !
Tarde demais reconheceu que mudara-se para um local de vizinhança “deverasmente” perigosa. A princípio, ignorou o assédio e as provocações. Esquálido, “rato” de biblioteca desbotado por anos e lustros de penumbra, o “quatrôlhos” Dirceu Borboleta da Matta levava a vida sobressaltado. Sua 6º série completa e o ar de doutor incomodavam o “zoológico” local. A vidinha pacata que sonhara para si estava virando uma... “áfrica”.
Ora era o orelhudo coelho, mais a hiena e seus priminhos, a jogarem bola na porta de sua casa. Já a raposa malandra rondava à noite, com o leão e o tigre rosnando “sorrisos” de poucos dentes, enquanto a pavoa liberada, na calçada em frente, exibia suas coxas magras e a suposta riqueza de “classe média pobre-pobre”.
Por fim, as “piranhas” da zangona abelhuda tentavam morder-lhe os fundos, apesar de seus pimpolhos bichos-preguiça viverem pendurados na grade da casa, estendendo a mão com olhos pidões. Assistindo a tudo, o sapo-boi verde-oliva policiava a vida do distante “vizinho” com despeito e inveja. Se dependesse só dele o sujeito defuntava.
Mas Dirceu resolveu seus problemas duma só tacada, quando colocou dentro de casa um tremendo “canhão”. Dona Ursolina, avantajada elefanta de ar carrrancudo, transformou abusados lobos em dissimulados carneiros.
Na cela superlotada, de reles bandido passara a herói. Cercado de admiradores e a coberto do olhar indiscreto dos carcereiros preparava-se a 25 dias para o grande golpe de sua vagabunda vida... fugir da cela da Delegacia recém-inaugurada. Segundo a propaganda oficial o prédio era inexpugnável, fortaleza com circuito fechado de TV e todo o aparato técnico para tratar homens como animais selvagens.
Aos 30 dias, estava pronto! Magérrimo, pálido, de olheiras fundas mas com um brilho de vitória a cintilar nas pupilas, fez sua primeira refeição decente em um mês, ele que jejuara tanto que o apelidaram de “homem-cobra”.
À meia-noite cantaram-lhe parabéns e, após a última ronda da madrugada, escalou com dificuldade a “escada humana” de quase 60 corpos até a clarabóia do teto da cadeia. Sob delirantes aplausos, deslizou com algum esforço os ossos oleados por entre as grossas barras de aço e sumiu na escuridão, para nunca mais ser encontrado.
O “homem-cobra” virou verbete nos anais da polícia civil parauara e ajudou, com sua fuga, a melhorar o “rango” dos demais condenados. Com boa comida, engordavam o suficiente para ninguém mais aprontar outra daquelas.
Levar sua decisão final até as últimas consequências era questão de honra. Cansara-se das constantes humilhações, do menosprêzo com que todos o tratavam naquela casa, dos dias de fome nos tempos ruins e até de alguns maus tratos. Sua paciência chegara ao fim !
Jurgenaldo tratava, com um barqueiro, de um "rôlo" envolvendo sua velha espingarda artesanal mais o cão de caça em troca de esguio "casco", canoa longa e leve feita de robusto tronco de samaúma.
Pelos constantes olhares a ele dirigidos, "Fininho" entendeu que virara moeda de escambo, apesar dos quase dez anos de canina fidelidade ao dono ingrato. Ferido nos brios, embrenhou-se na mata cerrada, fugindo até o mangal que bordejava imenso rio, negro e lodoso.
As enormes patas -- sinal de cão caçador -- tatearam com cuidado os imensos galhos que atiravam-se sobre as águas, espécie de polvo vegetal petrificado na margem lamacenta. Com os dentes cravados numa pesada pedra, equilibrando-se sobre o trampolim de galhos, limo e folhas, lançou-se o cão de encontro ao fatal destino.
O lençol escuro e frio cobriu aquele corpo esquálido, costelas à mostra, angústia, determinação e desespêro sendo afogados por milhões de litros d'água. A honra lavada em lama, molares e caninos aferrados ao naco de rocha, o pequeno corpo preferiu a morte a uma vida infame, com novo dono, novas torturas.
Dias depois, por ironia do Destino, o corpo disforme do cão amanheceu no modesto porto do casebre de Jurgenaldo. Sem a pedra e sem alguns dentes na boca inchada, "Fininho" de olhos esbugalhados e sorriso sardônico mirava seu ex-patrão com ar de alívio. Pela primeira vez na vida Jurgenaldo chorou... fôra por água abaixo um ótimo negócio !
Definitivamente, não gostava de cachorros. Eram uns bichos enjoados, que recusavam a comida estragada que lhes servia com parcimônia.Também não bebiam da morna e fétida água, azêda pelo limo da vasilha e dos restos de alimentos, além de ousarem passar mal por causa do seu feijão com excesso de tempêros e gordura.
Pior: tinham a extrema audácia de morrer em pouco tempo, deixando seu filhinho desconsolado e triste. Uns nojentos, sem tirar nem pôr !
Comprou, então, imenso pastor alemão de ar agressivo e olhar atento, todo em gesso e porcelana, que "vigiava" a casa melhor que qualquer um dos anteriores.
Agora, quando êle chega do trabalho, Marcinho dá longos uivos de boas-vindas. O menino só faz "pipi" em postes e, à mesa, recusa tudo o que não fôr carne ou osso. O pai já está preocupado... a continuar nesse rítmo o garoto não demora muito sairá atrás da primeira cadelinha que cruzar com êle.
Voando, sobre as águas revoltas, o barco salva-vidas foi em disparada ao encontro das 3 jovens Marias semi-afogadas, todas em total desespêro e aos gritos.
Indeciso, o aparvalhado bombeiro acabou salvando somente uma delas. Pereceram Maria do Rosário e Maria do Sacramento.
Apenas Maria do Socorro se salvou porque, no derradeiro minuto, gritara a palavra certa.
Tentou com afinco e persistência tornar-se músico de talento, mas tal qualidade teimava em ficar bem longe dele.Por fim, desistiu e, pouco depois, era o barman mais solicitado da cidade e seu boteco o mais famoso.
Lá, o cliente saboreava batidas e "rabos de galo" feitas no bojo de dourado trompete. Era a glória !
O grisalho e alquebrado LUCINERGES COUTO, junto com José Luís Coelho, jovem dinâmico e decidido, apresentaram-se a Saõ Pedro nos portais do Paraíso, após muito vagarem por limbos e purgatórios pois, no Inferno, Satanás não os queria nem pagando estadia.O porteiro celeste torceu o nariz e o vasto bigode, arqueou as sobrancelhas e "abriu o verbo":
-- "Escritores não são benvindos no Céu. Vocês não passam de uns inúteis, nada constroem de concreto para a humanidade e ainda se acham o máximo, só porque rabiscam umas bobagens e inventam filosofias baratas, para sonsos, trouxas e cegos. Sumam daqui"!
-- "Per'aí, ô chaveiro de meia tigela... quem é você para nos julgar? Já esqueceu que traíste o Filho de Deus por 3 vezes lá na Terra"?, retrucou em altos brados "Zé" Luís, dedo em riste na cara do santo velhinho.
Deram as costas à entrada celestial e sumiram entre nuvens, ambos preocupados com seus futuros. Foi quando Deus-Pai Todo Poderoso, que após imprimir as Tábuas da Lei gostara do estranho ofício (!?) de escritor, apontou o divino indicador para a dupla e os transformou em belas estrelas.
Os céus de Belém não são mais os mesmos... tremeluzindo com luz opaca mas firme ou vibrando intensa e ocasionalmente, dois novos astros enfeitam de poesia e esperança o firmamento desta "reiste terra de tanga" (segundo "Zé") (1) ou deste "purgatório da cultura" conforme Lucinerges.
NOTA DO AUTOR: (1) conforme o artigo de José Luís Coelho
no jornal DIÁRIO DO PARÁ, de Belém do Pará, em 30/04/1989.
Em má hora a megaempresa comprar milhões de ações em moeda estrangeira e, com a baixa cotação do dólar, estava a um passo (ou a 1 níquel) da falência. Contratou então um perito em desastres, especialista em soluções tresloucadas, para ir a Brasília, à casa do Chefe da Nação e ver o que era possível fazer para evitar a bancarrota. 48 horas depois, o Jornal Nacional comunicava ao país que o "totó" do Presidente fôra envenenado e corria risco de morte.
As Bolsas de Valores -- normalmente sensíveis até à gripe de foca -- enlouqueceram e o dólar disparou qual foguete espacial. A multinacional estava salva... e o Brasil um pouco mais endividado !
-- "Mata" essa "barata" se fôr homem !, berrou "seu" Lucindo com voz histérica, dando forte palmada na mesa.
-- "Considere a maldita "mortinha da silva"!, retruca o Apolinário na bucha, pronto para o embate.
Dona Anita, preparando ansiosa o ajantarado na cozinha calorenta, largou tudo num segundo ao ouvir a agitação nervosa dos homens lá na sala. Armada com uma lata de "spray" contra insetos invadiu célere o reduto masculino, borrifando o ar tóxico no marido & convidados e empastando todas as peças do adorado jogo de dominó do compadre Firmino, sob o olhar atônito dos 4 parceiros.
-- Desculpem, vizinhos, mas barata aqui em casa é... tiro e queda. Não sobra uma nem para lembrança! Mas onde é mesmo que está a bicha ?
O cavalheiro, de terno surrado e pasta de vendedor de planos de saúde, senta-se junto ao balcão do bar e pede, apressado:
-- Meu jovem, me sirva um cafézinho, que há muito tempo não provo um!
-- Café ZINHO nóis num téin, serve di ôtru ?
-- Não, meu chapa, você não me entendeu... pode ser de uma marca qualquer mesmo!
-- Quar qui é a marca, seu moço ?
-- Esquece... me vê aí uma água mineral com gás, sem marca, sem côr e nem tamanho. Será que dá, meu camarada ?
-- Ágoa minerá... sorforosa ô arcalina ?
Ah, meu São Benedito! Cancela tudo, "capiau", deixa prá lá! Escuta, eu posso ficar sentado aqui por um instante ?
-- Uái, pudê inté qui pódis! Mais num si isparrama muinto no banco i néin abre "as asa" pro mode num incomodá quein tá pagano !
E seguiu balcão a fora... O citadino afrouxou a gravata e pensou com suas abotoaduras de zero quilates: "Eita, Brasilzão pai d'égua esse, tchê" !
Em pleno "shabat" a multidão aguardava ansiosa a salomônica decisão real que elegeria a Mãe do Ano, na judaica Belém de priscas eras.
Centenas de candidatas sonhavam com os valiosos brindes. Ânforas de ouro, baixelas de prata, cortes de seda pura, xales de linho da Pérsia e felpudas mantas de lã, amontoadas no centro do pátio do templo enchiam de cobiça os olhos da populaça. Em silêncio e com espanto o povo ouviu do famoso rei de Jerusalém, em visita à cidade, o seguinte:
-- "Como todas vocês, mães dedicadas, merecem os parcos prêmios, ordeno que sejam feitos em mil pedaços e dê-se a cada uma o seu quinhão, como recordação. Assim seja..."
No que alguém murmurou entre dentes, no meio da massa humana:
-- "Porca miséria... Depois do caso daquele recém-nascido, lá no seu palácio, esse doido não decide mais coisa alguma" !
-- Eu vi com esses olhos que a terra há de comer... foi tiro e queda! O sujeito veio planando igual borboleta e estatelou-se na calçada.
-- Mas porque esse louco cometeu suicídio... e logo do alto do prédio?
-- Só que não foi suicídio, moço; era um protesto contra morte da filha, assassinada por bala perdida durante um tiroteio da Polícia!
-- E desde quando, no Brasil, alguém protesta se matando ?
Afastou-se acabrunhado da multidão sedenta de sangue e de detalhes mórbidos, desejando intimamente que todo político que protestasse subisse antes ao tôpo de algum edifício. Em muito pouco tempo nosso país estaria bem melhor, com toda certeza!
(N. do A.: o trecho final foi escrito em meados de 2000, quando
balas perdidas não passavam de um mero pesadelo noturno.)
"NATO" AZEVEDO
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QUEDA E TIRO
De terno e gravata em pleno verão dos anos 80, ziguezagueando por entre o formigueiro humano que tumultuava o trânsito na principal avenida do Rio, o office-boy do Banco Internacional caminhava apressado rumo ao centro nervoso onde se realizam as apostas, negócios e investimentos da Bolsa.
Na surrada maleta 007, em meio a canetas, clipes, restos de sanduíche do Mc Donalds e minicalendários pornográficos, um papelucho em 3 vias, original e duas cópias, valendo quase uma dívida externa de país latino.
Com ar preocupado e um olho no relógio de pulso, o jovem voava rumo ao Banco Central, aos computadores que avalisariam aquela vultosa compra de ações, títulos, CDBs e RDBs, em nome de milhares de clientes do BI, de acionistas dele e com capital ativo do próprio Banco. Qual sapo errante em autoestrada bandeirante, o rapazinho "pulava amarelinha" por entre os bólidos movidos a ódio e gasolina, ouvindo buzinas e palavrões.
Avançava célere através das 4 pistas da Avenida Pres. Vargas, a equilibrar numa das mãos o sorvete de três bolas recém-comprado. Soldado de uma guerra sem armas nem canhões, só lhe faltavam 3 passos para alcançar a trincheira no outro lado quando uma das bolas escorregou paletó abaixo, espatifando-se na pista asfáltica. Por um átimo de segundo o garoto desviou a retina do trânsito enlouquecedor para avaliar o estrago feito no adorado terno.
Ouviu-se um estrondo, freios rasgaram o betume amolecido, um corpo riscou o espaço qual cometa de carne e osso e a multidão de curiosos cravou os olhos ávidos de detalhes mórbidos sobre o infeliz atropelado. O sangue quente e pastoso rabiscou no solo a ruína de milhares de famílias, enquanto invadia a pasta de documentos e tingia de carmim a boleta amarela de 9 bilhões e não-sei-quantos mil cruzeiros.
Na sala de computadores do Banco Central, com o pregão fechado impreterivelmente às 13,15h, ninguém entendeu porque o BI não honrara o investimento pré-acordado.Lá fora, o distante som de sirene de uma ambulância lembrou a todos que Vida continua e, como diz um ditado popular... "enquanto o Mundo gira, A LUSITANA roda".
Em plena semana de festa da padroeira da cidadezinha, o linchamento do pescador que matara um amigo a facadas após rodade de bebidas fôra a gota d'água que esgotou o resto da paciência do pároco local, polonês sisudo, dinâmico e muito crítico, com o qual boa parte do povo cristão antipatizava de imediato.
À noitinha, o reverendo subiu ao púlpito apenas para verberar contra a barbárie, condenando a meia centena de justiceiros que arrastaram o corpo, qual Judas de sábado de Aleluia, pelas vielas do lugarejo. Cancelou a novena e a missa subsequente e exortou a todos que meditassem sobre o sucedido.
-- "Ninguém é melhor do que ninguém... perante a Lei de Deus e a lei dos homens somos todos iguais !", disse o vigário em tom que não admitia réplica.
À saída da matriz o borburinho era grande, os buchichos de reprovação se ampliaram e a indignação cresceu qual maré de pororoca quando o sermão do sacerdote chegou aos ouvidos dos familiares da vítima, barqueiro abastado e querido no lugar, com inúmeros dependentes e empregados.
Na mesma noite, anjos encapuzados armados de paus invadiram a Casa Paroquial, enquanto a lua escondia-se atrás das nuvens, transida de pavor. O sol da manhã seguinte iluminou sobre o humilde catre do servo do Senhor apenas uma posta de sangue e ossos moídos, com os pássaros engaiolados cantando felizes mais um dia de vida na face da Terra.
O povo em geral, com algum espanto e um acerto alívio, aceitou bem a fatalidade, comentando com uma pitada de ironia que "se eram todos iguais, o padre era muito diferente deles". Talvez o fato servisse de lição, a fim de que o Arcebispo lhes enviasse alguém mais condescendente com seus hábitos, seus costumes e... tradições.
Finalmente aparecera um homem, com letra maiúscula, com cara e coragem suficientes para enfrentar a companhia estadual de habitação num combate desgual na Justiça. O processo corria na capital do país, pois a lei naquela região era "tábula rasa", estava desmoralizada, não valia um níquel. Ademais, a Banca Astronômica Nacional tinha interesses no caso e fizera pressão para que tudo fosse arquivado. Uma vitória do sujeito abriria precedentes danosos para a empresa.
Na nação da desigualdade e da injustiça, da corrupção e impunidade, do fausto ladeando a miséria, na terra da incompetência aliada à incúria e a uma total ausência de fiscalização em todos os setores êle, enfim, vencera. Custara-lhe meses de angústia de angústia e humilhações mas, graças ao jovem promotor Inocêncio Guedes, uma liminar inédita nos anais do Tribunal dera-lhe ganho de causa.
Acima da letra da lei, da Justiça de parágrafos e alíneas, havia a justiça moral, a que reconhece as necessidades vitais do homem (casa/alimento/liberdade), antes de conceitos burocráticos ou contratos oficiais. Fôra derrotado o descaso da perdulária BAN, seu descompromisso com o mau uso por terceiros do dinheiro público, a intermediação desnecessária e prejudicial que ela sustentava (e incentivava) nas questões de moradia popular.
E, acima de tudo, dera-se merecida lição na CORJHA, reduto de conchavos vis, de negociatas espúrias, de projetos fantasmas, fonte de injustiças planejadas e vinganças direcionadas.A Companhia Regional de "Jogadas" e Habitação - CORJHA pelo menos desta vez não poderia favorecer parentes e apaniguados de diretores e funcionários retirando na marra, das casas populares em atraso, as famílias que as pagaram por quinze anos ou mais.
Num belo "negócio da China", entregava um casebre de 4 x 6 metros sem reboco nem pintura e retomava, vários anos depois, uma enorme residência com diversos cômodos, forro, muro e lajotada.O ancião vencera todos e, numa decisão inédita, o juiz decretou que a CORJHA tinha direito tão-somente ao trecho da casa que originalmente ela entregara. As benfeitorias feitas quitavam junto à BAN o imóvel que, doravante, seria ocupado pelas duas famílias.
Foi sustada ação de imissão de posse e o consequente despejo, criando jurisprudência contra a "ciranda de habitação" patrocinada pela BAN. Caríssima e maciça propaganda estatal incentivando a compra de habitação popular, tempos depois gastos absurdos com editais e citações de despejo nas páginas dos jornais de toda a Nação e, por fim, casas e prédios vazios invadidos pela população despejada de outras tantas casas e prédios, estes também abandonados.
Hoje, o heróico ex-mutuário divide sua casa com um protegido da CORJHA, mas ambas as famílias vivem em boa paz. "Seu" Atanagildo e a idosa esposa pagam pelo uso do banheiro e chuveiro, além das refeições preparadas em sua antiga cozinha pelos novos "inquilinos".
Já o posudo e arrogante doutor Nilson Thamal, espremido com a mulher e 3 filhas no quarto & cozinha que a Companhia oferecia como modelo de casa popular, tem que pagar pedágio cada vez que entra ou saí da residência, transitando constrangido pelo corredor lateral onde uma roleta registra a quantas anda a ganância e a insensibilidade de alguns (ou de quase todos os) homens públicos, que imaginam jamais passar pelas dificuldades e humilhações que impõem a tantos brasileiros, quando exercem seus cargos.
O caso é real e recente mas fica melhor no reino da fantasia. A estória gira em torno de um jovem jambeiro -- árvore frondosa de médio porte, que doa à humanidade "maçãs" cítricas com formato de cajús -- e sua densa e incômoda folhagem.Industriada pelo marido a rotunda senhora acordou o vizinho dos fundos de sua casa, na rua anterior, reclamando que as folhas caídas sujavam seu exíguo quintal. A solução era cortar os braços, digo, podar os galhos que avançavam sobre o muro da distinta.
Aos irmãos cariocas não havia alternativa: recusar a "sugestão" era trocar aborrecimento sazonal por outro permanente. Aquiesceram a contragosto! Armado de escada, imenso facão -- "terçado", nestas plagas -- má-fé e mediocridade em doses cavalares, o macho da megera arrasou com a terceira dimensão do jambeiro (plantado ao pé do muro pela mãe dos rapazes), reduzido agora a uma banda só.
Menos de 5 meses depois, a Natureza vingava-se da covardia produzindo frutos em dobro no lado que sobrou da indefesa árvore. Flagrada "pescando" com enorme vara os jambos maduros em plena hora da sesta -- quando o Pará inteiro "tira um cochilo" -- a santa matrona não se fez de rogada.
Assomando o rosto de "Monalisa", tão comum na região, por sobre o muro, perguntou com ar inocente:
-- "Vizinho, posso tirar algumas frutas"?
-- "Pode sim, senhora... as que estiverem do seu lado do muro são todas suas". Com um sorriso amarelo, ela desliza igual jequitiranabóia de volta a seu quintal. Coitada ! Terá que aguardar 3 ou 4 anos até tornar a provar o intenso sabor dos rubros jambos. Às vezes, "aqui se faz e aqui se paga"!
Foi amor à primeira vista! Luizão, rapaz recém-chegado à discreta vila de poucas casas e Remo, garoto esbelto, talho fino e maneiras delicadas embora elegantes, nascido ali treze verões antes. Transbordando charme, com sutil rebolado, Remo voltava do supermercado sobraçando compras quando seus olharam se cruzaram. O que seus corações bradaram em silêncio valia por mil palavras. Tiveram ambos um sono intranquilo.
Filho único de pais separados, a jovem mãe satisfazia-lhe todos os caprichos, perdoando-lhe todas as faltas e crivava Remo de atenções e carinhos. Garoto caseiro, tinha por amigo e confidente, instrutor e modelo, outro jovem em tudo semelhante a êle, a quem apresentava como primo. Rômulo era cópia um pouco mais velha (e mais experiente) do amigo e, com maior liberdade, "caíra na vida" muito cedo.
Não demorou para que Remo lhe confessasse seu mais secreto anseio e êle, Cupido de gestos amaneirados e olhar indecente, apresentasse Luís à mãe carente e vaidosa do garoto. Luizão tornou-se íntimo da casa, vivia de visitas à mãe de Remo, que a vizinhança curiosa fingia não notar.
Passava horas no quarto jogando cartas ou dominó com Remo, trocando afagos, roçando beijos e carícias mais ousadas, ouvidos atentos ao menor ruído. Quando a mãe descobriu já era tarde, uma paixão devoradora tomara conta do corpo & mente do jovem Remo. Quando a mãe do Luís descobriu, êles já se preparavam para fugir de casa e morar juntos, num "bangalô" que Rômulo providenciara e onde satisfazia suas taras. Quando as demais mães residentes na vila descobriram, o "triângulo das bermudas" estava formado, com Rômulo completando o trio e a mãe de Remo abrigando todos para evitar escândalos.
Hoje, vivem os três no melhor dos mundos, corpos suarentos enroscando-se num amor selvagem e sem freios, braços e pernas cabeludas enroladas como serpentes aos troncos oleosos e perfumados. Felizmente, estão a salvo de pontapés, pauladas ou de um destino pior, por serem todos êles "gente da terra".
-- Pai, estão usando seu santo nome em vão em todos os lugares... até naquele ridículo esporte chamado futebol, veja só !
-- Dileto Filho, êles são perigosos... não vá você morrer de novo e, pior, por nada !
-- Eu vou voltar e acabar de vez com estas heresias... "se Deus quizer"!
Desceu à Terra na semana de Natal de 2010, com bela coroa de louros sobre a cabeleira indócil e vestes de beduíno, em pleno "Saara" carioca, sufocado em eio à multidão sedenta de compras & presentes. Tentou sem sucesso convencer a todos que era o Cristo em nova missão, visitou federações esportivas e Ministérios, governadores e doutores, igrejas e templos de todos os tipos e denominações, editoras e gravadoras, foi de Seca a Meca, do Oiapoque ao Chuí... até pousar na rica sede televisiva do Templo Mundial do Reino do Senhor.
Discretamente o Bispo-Chefe acionou sua segurança particular e o incauto Jesus acabou numa cela infecta de delegacia, onde a psicóloga de plantão recomendou imediato internamento no Manicômio Judiciário.
Por fim, durante a Semana Santa, Êle conseguiu convencer os demais internos a pregá-lo numa cruz, feita às pressas com as tábuas da mesa do refeitório. Em breve iria ressuscitar, para regressar ao local de onde nunca deveria ter saído... nem da primeira vez !
Após anos de tentativas infrutíferas, o cientista indiano Bapraput Kep'riw finalmente desenvolvera com sucesso sua experiência final: o "human bonsai".
Exibido no mercado central de Bombaim -- com os braços absurdamente retorcidos e os dedos das mães esticados ao extremo -- o menino de olhar triste esboçava pálido sorriso, correspondendo à curiosidade geral.
Sobressaltado em meio à multidão o jovem rosto de ar altivo equilibrava-se no topo de esguio pescoço, alongado pela força de engenhosas argolas. Apenas uma coisa o incomodava: os 2 vasos nos quais o plantaram eram pequenos demais para seus pés. Condoídas com a situação, entidades de defesa dos direitos humanos do país inteiro exigiram rega mensal e somente uma poda por
ano.
"NATO" AZEVEDO
Raimundo Nonato era descendente de um povo que, geração após geração, "nordestinizou" aquela densa região, transformando-a quase toda num deserto.
Êle mesmo, com o espírito da caatinga a bradar dentro de si, não era muito "chegado" em florestas. Árvore para êle era só dinheiro ou, no máximo, cerca, carvão e, principalmente, travessas de sustentação das casas,
Num belo dia ensolarado, a canícula a cozer-lhe os miolos, saiu esbaforido do casebre de estuque e palha, voltando horas depois com um caríssimo "bonsai", que dispôs sobre o tronco podre de colossal samaumeira que um dia habitou soberana seu quintal.
Com os dedos da mãozarra à sombra do minúsculo arbusto, agradeceu aos céus por aqueles instantes de prazer.
Não era uma sexta-feira 13 mas 16, do azíago mês de cachorro louco, o ano de 61 quase no fim. Desempregado e aniversariando naquela data, João “Cabra da Peste” – leonino do 3º decanato – acordou sobressaltado, num barraco no Morro da Formiga.
Suando frio, confessou à sua fiel “Amélia” que tivera outro daqueles pesadelos... gigantesco leão a perseguir-lhe os passos (e os gritos) por toda a savana africana.
-- “Janjão”, meu bem, será que vais torrar de novo a “grana” do nosso almoço no jôgo do bicho ?!
-- Vou, nêga, um dia acerto esse leão de jeito... só assim a gente sai da lama. Despediu-se com um “dominus vobiscum” (adorava latim) e saiu.
Dito e feito, acertou no milhar... Voltou para casa com o coração aos pulos, ele aos saltos no meio da avenida, desligado do mundo.
-- Hei, cuidado com o carro... (carro? que carro?! paft-pum !!!) E lá se foi dinheiro para todo lado, com o corpo estendido no chão, desconjuntado e moribundo.
-- Anotaram a chapa do veículo sim e está com o guarda... L-E-O 1661! Do cara não sobrou quase nada, ficou igual cabra que leão “janta” na selva !
Tarde demais reconheceu que mudara-se para um local de vizinhança “deverasmente” perigosa. A princípio, ignorou o assédio e as provocações. Esquálido, “rato” de biblioteca desbotado por anos e lustros de penumbra, o “quatrôlhos” Dirceu Borboleta da Matta levava a vida sobressaltado. Sua 6º série completa e o ar de doutor incomodavam o “zoológico” local. A vidinha pacata que sonhara para si estava virando uma... “áfrica”.
Ora era o orelhudo coelho, mais a hiena e seus priminhos, a jogarem bola na porta de sua casa. Já a raposa malandra rondava à noite, com o leão e o tigre rosnando “sorrisos” de poucos dentes, enquanto a pavoa liberada, na calçada em frente, exibia suas coxas magras e a suposta riqueza de “classe média pobre-pobre”.
Por fim, as “piranhas” da zangona abelhuda tentavam morder-lhe os fundos, apesar de seus pimpolhos bichos-preguiça viverem pendurados na grade da casa, estendendo a mão com olhos pidões. Assistindo a tudo, o sapo-boi verde-oliva policiava a vida do distante “vizinho” com despeito e inveja. Se dependesse só dele o sujeito defuntava.
Mas Dirceu resolveu seus problemas duma só tacada, quando colocou dentro de casa um tremendo “canhão”. Dona Ursolina, avantajada elefanta de ar carrrancudo, transformou abusados lobos em dissimulados carneiros.
Na cela superlotada, de reles bandido passara a herói. Cercado de admiradores e a coberto do olhar indiscreto dos carcereiros preparava-se a 25 dias para o grande golpe de sua vagabunda vida... fugir da cela da Delegacia recém-inaugurada. Segundo a propaganda oficial o prédio era inexpugnável, fortaleza com circuito fechado de TV e todo o aparato técnico para tratar homens como animais selvagens.
Aos 30 dias, estava pronto! Magérrimo, pálido, de olheiras fundas mas com um brilho de vitória a cintilar nas pupilas, fez sua primeira refeição decente em um mês, ele que jejuara tanto que o apelidaram de “homem-cobra”.
À meia-noite cantaram-lhe parabéns e, após a última ronda da madrugada, escalou com dificuldade a “escada humana” de quase 60 corpos até a clarabóia do teto da cadeia. Sob delirantes aplausos, deslizou com algum esforço os ossos oleados por entre as grossas barras de aço e sumiu na escuridão, para nunca mais ser encontrado.
O “homem-cobra” virou verbete nos anais da polícia civil parauara e ajudou, com sua fuga, a melhorar o “rango” dos demais condenados. Com boa comida, engordavam o suficiente para ninguém mais aprontar outra daquelas.
Levar sua decisão final até as últimas consequências era questão de honra. Cansara-se das constantes humilhações, do menosprêzo com que todos o tratavam naquela casa, dos dias de fome nos tempos ruins e até de alguns maus tratos. Sua paciência chegara ao fim !
Jurgenaldo tratava, com um barqueiro, de um "rôlo" envolvendo sua velha espingarda artesanal mais o cão de caça em troca de esguio "casco", canoa longa e leve feita de robusto tronco de samaúma.
Pelos constantes olhares a ele dirigidos, "Fininho" entendeu que virara moeda de escambo, apesar dos quase dez anos de canina fidelidade ao dono ingrato. Ferido nos brios, embrenhou-se na mata cerrada, fugindo até o mangal que bordejava imenso rio, negro e lodoso.
As enormes patas -- sinal de cão caçador -- tatearam com cuidado os imensos galhos que atiravam-se sobre as águas, espécie de polvo vegetal petrificado na margem lamacenta. Com os dentes cravados numa pesada pedra, equilibrando-se sobre o trampolim de galhos, limo e folhas, lançou-se o cão de encontro ao fatal destino.
O lençol escuro e frio cobriu aquele corpo esquálido, costelas à mostra, angústia, determinação e desespêro sendo afogados por milhões de litros d'água. A honra lavada em lama, molares e caninos aferrados ao naco de rocha, o pequeno corpo preferiu a morte a uma vida infame, com novo dono, novas torturas.
Dias depois, por ironia do Destino, o corpo disforme do cão amanheceu no modesto porto do casebre de Jurgenaldo. Sem a pedra e sem alguns dentes na boca inchada, "Fininho" de olhos esbugalhados e sorriso sardônico mirava seu ex-patrão com ar de alívio. Pela primeira vez na vida Jurgenaldo chorou... fôra por água abaixo um ótimo negócio !
Definitivamente, não gostava de cachorros. Eram uns bichos enjoados, que recusavam a comida estragada que lhes servia com parcimônia.Também não bebiam da morna e fétida água, azêda pelo limo da vasilha e dos restos de alimentos, além de ousarem passar mal por causa do seu feijão com excesso de tempêros e gordura.
Pior: tinham a extrema audácia de morrer em pouco tempo, deixando seu filhinho desconsolado e triste. Uns nojentos, sem tirar nem pôr !
Comprou, então, imenso pastor alemão de ar agressivo e olhar atento, todo em gesso e porcelana, que "vigiava" a casa melhor que qualquer um dos anteriores.
Agora, quando êle chega do trabalho, Marcinho dá longos uivos de boas-vindas. O menino só faz "pipi" em postes e, à mesa, recusa tudo o que não fôr carne ou osso. O pai já está preocupado... a continuar nesse rítmo o garoto não demora muito sairá atrás da primeira cadelinha que cruzar com êle.
Voando, sobre as águas revoltas, o barco salva-vidas foi em disparada ao encontro das 3 jovens Marias semi-afogadas, todas em total desespêro e aos gritos.
Indeciso, o aparvalhado bombeiro acabou salvando somente uma delas. Pereceram Maria do Rosário e Maria do Sacramento.
Apenas Maria do Socorro se salvou porque, no derradeiro minuto, gritara a palavra certa.
Tentou com afinco e persistência tornar-se músico de talento, mas tal qualidade teimava em ficar bem longe dele.Por fim, desistiu e, pouco depois, era o barman mais solicitado da cidade e seu boteco o mais famoso.
Lá, o cliente saboreava batidas e "rabos de galo" feitas no bojo de dourado trompete. Era a glória !
O grisalho e alquebrado LUCINERGES COUTO, junto com José Luís Coelho, jovem dinâmico e decidido, apresentaram-se a Saõ Pedro nos portais do Paraíso, após muito vagarem por limbos e purgatórios pois, no Inferno, Satanás não os queria nem pagando estadia.O porteiro celeste torceu o nariz e o vasto bigode, arqueou as sobrancelhas e "abriu o verbo":
-- "Escritores não são benvindos no Céu. Vocês não passam de uns inúteis, nada constroem de concreto para a humanidade e ainda se acham o máximo, só porque rabiscam umas bobagens e inventam filosofias baratas, para sonsos, trouxas e cegos. Sumam daqui"!
-- "Per'aí, ô chaveiro de meia tigela... quem é você para nos julgar? Já esqueceu que traíste o Filho de Deus por 3 vezes lá na Terra"?, retrucou em altos brados "Zé" Luís, dedo em riste na cara do santo velhinho.
Deram as costas à entrada celestial e sumiram entre nuvens, ambos preocupados com seus futuros. Foi quando Deus-Pai Todo Poderoso, que após imprimir as Tábuas da Lei gostara do estranho ofício (!?) de escritor, apontou o divino indicador para a dupla e os transformou em belas estrelas.
Os céus de Belém não são mais os mesmos... tremeluzindo com luz opaca mas firme ou vibrando intensa e ocasionalmente, dois novos astros enfeitam de poesia e esperança o firmamento desta "reiste terra de tanga" (segundo "Zé") (1) ou deste "purgatório da cultura" conforme Lucinerges.
NOTA DO AUTOR: (1) conforme o artigo de José Luís Coelho
no jornal DIÁRIO DO PARÁ, de Belém do Pará, em 30/04/1989.
Em má hora a megaempresa comprar milhões de ações em moeda estrangeira e, com a baixa cotação do dólar, estava a um passo (ou a 1 níquel) da falência. Contratou então um perito em desastres, especialista em soluções tresloucadas, para ir a Brasília, à casa do Chefe da Nação e ver o que era possível fazer para evitar a bancarrota. 48 horas depois, o Jornal Nacional comunicava ao país que o "totó" do Presidente fôra envenenado e corria risco de morte.
As Bolsas de Valores -- normalmente sensíveis até à gripe de foca -- enlouqueceram e o dólar disparou qual foguete espacial. A multinacional estava salva... e o Brasil um pouco mais endividado !
-- "Mata" essa "barata" se fôr homem !, berrou "seu" Lucindo com voz histérica, dando forte palmada na mesa.
-- "Considere a maldita "mortinha da silva"!, retruca o Apolinário na bucha, pronto para o embate.
Dona Anita, preparando ansiosa o ajantarado na cozinha calorenta, largou tudo num segundo ao ouvir a agitação nervosa dos homens lá na sala. Armada com uma lata de "spray" contra insetos invadiu célere o reduto masculino, borrifando o ar tóxico no marido & convidados e empastando todas as peças do adorado jogo de dominó do compadre Firmino, sob o olhar atônito dos 4 parceiros.
-- Desculpem, vizinhos, mas barata aqui em casa é... tiro e queda. Não sobra uma nem para lembrança! Mas onde é mesmo que está a bicha ?
O cavalheiro, de terno surrado e pasta de vendedor de planos de saúde, senta-se junto ao balcão do bar e pede, apressado:
-- Meu jovem, me sirva um cafézinho, que há muito tempo não provo um!
-- Café ZINHO nóis num téin, serve di ôtru ?
-- Não, meu chapa, você não me entendeu... pode ser de uma marca qualquer mesmo!
-- Quar qui é a marca, seu moço ?
-- Esquece... me vê aí uma água mineral com gás, sem marca, sem côr e nem tamanho. Será que dá, meu camarada ?
-- Ágoa minerá... sorforosa ô arcalina ?
Ah, meu São Benedito! Cancela tudo, "capiau", deixa prá lá! Escuta, eu posso ficar sentado aqui por um instante ?
-- Uái, pudê inté qui pódis! Mais num si isparrama muinto no banco i néin abre "as asa" pro mode num incomodá quein tá pagano !
E seguiu balcão a fora... O citadino afrouxou a gravata e pensou com suas abotoaduras de zero quilates: "Eita, Brasilzão pai d'égua esse, tchê" !
Em pleno "shabat" a multidão aguardava ansiosa a salomônica decisão real que elegeria a Mãe do Ano, na judaica Belém de priscas eras.
Centenas de candidatas sonhavam com os valiosos brindes. Ânforas de ouro, baixelas de prata, cortes de seda pura, xales de linho da Pérsia e felpudas mantas de lã, amontoadas no centro do pátio do templo enchiam de cobiça os olhos da populaça. Em silêncio e com espanto o povo ouviu do famoso rei de Jerusalém, em visita à cidade, o seguinte:
-- "Como todas vocês, mães dedicadas, merecem os parcos prêmios, ordeno que sejam feitos em mil pedaços e dê-se a cada uma o seu quinhão, como recordação. Assim seja..."
No que alguém murmurou entre dentes, no meio da massa humana:
-- "Porca miséria... Depois do caso daquele recém-nascido, lá no seu palácio, esse doido não decide mais coisa alguma" !
-- Eu vi com esses olhos que a terra há de comer... foi tiro e queda! O sujeito veio planando igual borboleta e estatelou-se na calçada.
-- Mas porque esse louco cometeu suicídio... e logo do alto do prédio?
-- Só que não foi suicídio, moço; era um protesto contra morte da filha, assassinada por bala perdida durante um tiroteio da Polícia!
-- E desde quando, no Brasil, alguém protesta se matando ?
Afastou-se acabrunhado da multidão sedenta de sangue e de detalhes mórbidos, desejando intimamente que todo político que protestasse subisse antes ao tôpo de algum edifício. Em muito pouco tempo nosso país estaria bem melhor, com toda certeza!
(N. do A.: o trecho final foi escrito em meados de 2000, quando
balas perdidas não passavam de um mero pesadelo noturno.)
"NATO" AZEVEDO
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QUEDA E TIRO
De terno e gravata em pleno verão dos anos 80, ziguezagueando por entre o formigueiro humano que tumultuava o trânsito na principal avenida do Rio, o office-boy do Banco Internacional caminhava apressado rumo ao centro nervoso onde se realizam as apostas, negócios e investimentos da Bolsa.
Na surrada maleta 007, em meio a canetas, clipes, restos de sanduíche do Mc Donalds e minicalendários pornográficos, um papelucho em 3 vias, original e duas cópias, valendo quase uma dívida externa de país latino.
Com ar preocupado e um olho no relógio de pulso, o jovem voava rumo ao Banco Central, aos computadores que avalisariam aquela vultosa compra de ações, títulos, CDBs e RDBs, em nome de milhares de clientes do BI, de acionistas dele e com capital ativo do próprio Banco. Qual sapo errante em autoestrada bandeirante, o rapazinho "pulava amarelinha" por entre os bólidos movidos a ódio e gasolina, ouvindo buzinas e palavrões.
Avançava célere através das 4 pistas da Avenida Pres. Vargas, a equilibrar numa das mãos o sorvete de três bolas recém-comprado. Soldado de uma guerra sem armas nem canhões, só lhe faltavam 3 passos para alcançar a trincheira no outro lado quando uma das bolas escorregou paletó abaixo, espatifando-se na pista asfáltica. Por um átimo de segundo o garoto desviou a retina do trânsito enlouquecedor para avaliar o estrago feito no adorado terno.
Ouviu-se um estrondo, freios rasgaram o betume amolecido, um corpo riscou o espaço qual cometa de carne e osso e a multidão de curiosos cravou os olhos ávidos de detalhes mórbidos sobre o infeliz atropelado. O sangue quente e pastoso rabiscou no solo a ruína de milhares de famílias, enquanto invadia a pasta de documentos e tingia de carmim a boleta amarela de 9 bilhões e não-sei-quantos mil cruzeiros.
Na sala de computadores do Banco Central, com o pregão fechado impreterivelmente às 13,15h, ninguém entendeu porque o BI não honrara o investimento pré-acordado.Lá fora, o distante som de sirene de uma ambulância lembrou a todos que Vida continua e, como diz um ditado popular... "enquanto o Mundo gira, A LUSITANA roda".
Em plena semana de festa da padroeira da cidadezinha, o linchamento do pescador que matara um amigo a facadas após rodade de bebidas fôra a gota d'água que esgotou o resto da paciência do pároco local, polonês sisudo, dinâmico e muito crítico, com o qual boa parte do povo cristão antipatizava de imediato.
À noitinha, o reverendo subiu ao púlpito apenas para verberar contra a barbárie, condenando a meia centena de justiceiros que arrastaram o corpo, qual Judas de sábado de Aleluia, pelas vielas do lugarejo. Cancelou a novena e a missa subsequente e exortou a todos que meditassem sobre o sucedido.
-- "Ninguém é melhor do que ninguém... perante a Lei de Deus e a lei dos homens somos todos iguais !", disse o vigário em tom que não admitia réplica.
À saída da matriz o borburinho era grande, os buchichos de reprovação se ampliaram e a indignação cresceu qual maré de pororoca quando o sermão do sacerdote chegou aos ouvidos dos familiares da vítima, barqueiro abastado e querido no lugar, com inúmeros dependentes e empregados.
Na mesma noite, anjos encapuzados armados de paus invadiram a Casa Paroquial, enquanto a lua escondia-se atrás das nuvens, transida de pavor. O sol da manhã seguinte iluminou sobre o humilde catre do servo do Senhor apenas uma posta de sangue e ossos moídos, com os pássaros engaiolados cantando felizes mais um dia de vida na face da Terra.
O povo em geral, com algum espanto e um acerto alívio, aceitou bem a fatalidade, comentando com uma pitada de ironia que "se eram todos iguais, o padre era muito diferente deles". Talvez o fato servisse de lição, a fim de que o Arcebispo lhes enviasse alguém mais condescendente com seus hábitos, seus costumes e... tradições.
Finalmente aparecera um homem, com letra maiúscula, com cara e coragem suficientes para enfrentar a companhia estadual de habitação num combate desgual na Justiça. O processo corria na capital do país, pois a lei naquela região era "tábula rasa", estava desmoralizada, não valia um níquel. Ademais, a Banca Astronômica Nacional tinha interesses no caso e fizera pressão para que tudo fosse arquivado. Uma vitória do sujeito abriria precedentes danosos para a empresa.
Na nação da desigualdade e da injustiça, da corrupção e impunidade, do fausto ladeando a miséria, na terra da incompetência aliada à incúria e a uma total ausência de fiscalização em todos os setores êle, enfim, vencera. Custara-lhe meses de angústia de angústia e humilhações mas, graças ao jovem promotor Inocêncio Guedes, uma liminar inédita nos anais do Tribunal dera-lhe ganho de causa.
Acima da letra da lei, da Justiça de parágrafos e alíneas, havia a justiça moral, a que reconhece as necessidades vitais do homem (casa/alimento/liberdade), antes de conceitos burocráticos ou contratos oficiais. Fôra derrotado o descaso da perdulária BAN, seu descompromisso com o mau uso por terceiros do dinheiro público, a intermediação desnecessária e prejudicial que ela sustentava (e incentivava) nas questões de moradia popular.
E, acima de tudo, dera-se merecida lição na CORJHA, reduto de conchavos vis, de negociatas espúrias, de projetos fantasmas, fonte de injustiças planejadas e vinganças direcionadas.A Companhia Regional de "Jogadas" e Habitação - CORJHA pelo menos desta vez não poderia favorecer parentes e apaniguados de diretores e funcionários retirando na marra, das casas populares em atraso, as famílias que as pagaram por quinze anos ou mais.
Num belo "negócio da China", entregava um casebre de 4 x 6 metros sem reboco nem pintura e retomava, vários anos depois, uma enorme residência com diversos cômodos, forro, muro e lajotada.O ancião vencera todos e, numa decisão inédita, o juiz decretou que a CORJHA tinha direito tão-somente ao trecho da casa que originalmente ela entregara. As benfeitorias feitas quitavam junto à BAN o imóvel que, doravante, seria ocupado pelas duas famílias.
Foi sustada ação de imissão de posse e o consequente despejo, criando jurisprudência contra a "ciranda de habitação" patrocinada pela BAN. Caríssima e maciça propaganda estatal incentivando a compra de habitação popular, tempos depois gastos absurdos com editais e citações de despejo nas páginas dos jornais de toda a Nação e, por fim, casas e prédios vazios invadidos pela população despejada de outras tantas casas e prédios, estes também abandonados.
Hoje, o heróico ex-mutuário divide sua casa com um protegido da CORJHA, mas ambas as famílias vivem em boa paz. "Seu" Atanagildo e a idosa esposa pagam pelo uso do banheiro e chuveiro, além das refeições preparadas em sua antiga cozinha pelos novos "inquilinos".
Já o posudo e arrogante doutor Nilson Thamal, espremido com a mulher e 3 filhas no quarto & cozinha que a Companhia oferecia como modelo de casa popular, tem que pagar pedágio cada vez que entra ou saí da residência, transitando constrangido pelo corredor lateral onde uma roleta registra a quantas anda a ganância e a insensibilidade de alguns (ou de quase todos os) homens públicos, que imaginam jamais passar pelas dificuldades e humilhações que impõem a tantos brasileiros, quando exercem seus cargos.
O caso é real e recente mas fica melhor no reino da fantasia. A estória gira em torno de um jovem jambeiro -- árvore frondosa de médio porte, que doa à humanidade "maçãs" cítricas com formato de cajús -- e sua densa e incômoda folhagem.Industriada pelo marido a rotunda senhora acordou o vizinho dos fundos de sua casa, na rua anterior, reclamando que as folhas caídas sujavam seu exíguo quintal. A solução era cortar os braços, digo, podar os galhos que avançavam sobre o muro da distinta.
Aos irmãos cariocas não havia alternativa: recusar a "sugestão" era trocar aborrecimento sazonal por outro permanente. Aquiesceram a contragosto! Armado de escada, imenso facão -- "terçado", nestas plagas -- má-fé e mediocridade em doses cavalares, o macho da megera arrasou com a terceira dimensão do jambeiro (plantado ao pé do muro pela mãe dos rapazes), reduzido agora a uma banda só.
Menos de 5 meses depois, a Natureza vingava-se da covardia produzindo frutos em dobro no lado que sobrou da indefesa árvore. Flagrada "pescando" com enorme vara os jambos maduros em plena hora da sesta -- quando o Pará inteiro "tira um cochilo" -- a santa matrona não se fez de rogada.
Assomando o rosto de "Monalisa", tão comum na região, por sobre o muro, perguntou com ar inocente:
-- "Vizinho, posso tirar algumas frutas"?
-- "Pode sim, senhora... as que estiverem do seu lado do muro são todas suas". Com um sorriso amarelo, ela desliza igual jequitiranabóia de volta a seu quintal. Coitada ! Terá que aguardar 3 ou 4 anos até tornar a provar o intenso sabor dos rubros jambos. Às vezes, "aqui se faz e aqui se paga"!
Foi amor à primeira vista! Luizão, rapaz recém-chegado à discreta vila de poucas casas e Remo, garoto esbelto, talho fino e maneiras delicadas embora elegantes, nascido ali treze verões antes. Transbordando charme, com sutil rebolado, Remo voltava do supermercado sobraçando compras quando seus olharam se cruzaram. O que seus corações bradaram em silêncio valia por mil palavras. Tiveram ambos um sono intranquilo.
Filho único de pais separados, a jovem mãe satisfazia-lhe todos os caprichos, perdoando-lhe todas as faltas e crivava Remo de atenções e carinhos. Garoto caseiro, tinha por amigo e confidente, instrutor e modelo, outro jovem em tudo semelhante a êle, a quem apresentava como primo. Rômulo era cópia um pouco mais velha (e mais experiente) do amigo e, com maior liberdade, "caíra na vida" muito cedo.
Não demorou para que Remo lhe confessasse seu mais secreto anseio e êle, Cupido de gestos amaneirados e olhar indecente, apresentasse Luís à mãe carente e vaidosa do garoto. Luizão tornou-se íntimo da casa, vivia de visitas à mãe de Remo, que a vizinhança curiosa fingia não notar.
Passava horas no quarto jogando cartas ou dominó com Remo, trocando afagos, roçando beijos e carícias mais ousadas, ouvidos atentos ao menor ruído. Quando a mãe descobriu já era tarde, uma paixão devoradora tomara conta do corpo & mente do jovem Remo. Quando a mãe do Luís descobriu, êles já se preparavam para fugir de casa e morar juntos, num "bangalô" que Rômulo providenciara e onde satisfazia suas taras. Quando as demais mães residentes na vila descobriram, o "triângulo das bermudas" estava formado, com Rômulo completando o trio e a mãe de Remo abrigando todos para evitar escândalos.
Hoje, vivem os três no melhor dos mundos, corpos suarentos enroscando-se num amor selvagem e sem freios, braços e pernas cabeludas enroladas como serpentes aos troncos oleosos e perfumados. Felizmente, estão a salvo de pontapés, pauladas ou de um destino pior, por serem todos êles "gente da terra".
-- Pai, estão usando seu santo nome em vão em todos os lugares... até naquele ridículo esporte chamado futebol, veja só !
-- Dileto Filho, êles são perigosos... não vá você morrer de novo e, pior, por nada !
-- Eu vou voltar e acabar de vez com estas heresias... "se Deus quizer"!
Desceu à Terra na semana de Natal de 2010, com bela coroa de louros sobre a cabeleira indócil e vestes de beduíno, em pleno "Saara" carioca, sufocado em eio à multidão sedenta de compras & presentes. Tentou sem sucesso convencer a todos que era o Cristo em nova missão, visitou federações esportivas e Ministérios, governadores e doutores, igrejas e templos de todos os tipos e denominações, editoras e gravadoras, foi de Seca a Meca, do Oiapoque ao Chuí... até pousar na rica sede televisiva do Templo Mundial do Reino do Senhor.
Discretamente o Bispo-Chefe acionou sua segurança particular e o incauto Jesus acabou numa cela infecta de delegacia, onde a psicóloga de plantão recomendou imediato internamento no Manicômio Judiciário.
Por fim, durante a Semana Santa, Êle conseguiu convencer os demais internos a pregá-lo numa cruz, feita às pressas com as tábuas da mesa do refeitório. Em breve iria ressuscitar, para regressar ao local de onde nunca deveria ter saído... nem da primeira vez !
Após anos de tentativas infrutíferas, o cientista indiano Bapraput Kep'riw finalmente desenvolvera com sucesso sua experiência final: o "human bonsai".
Exibido no mercado central de Bombaim -- com os braços absurdamente retorcidos e os dedos das mães esticados ao extremo -- o menino de olhar triste esboçava pálido sorriso, correspondendo à curiosidade geral.
Sobressaltado em meio à multidão o jovem rosto de ar altivo equilibrava-se no topo de esguio pescoço, alongado pela força de engenhosas argolas. Apenas uma coisa o incomodava: os 2 vasos nos quais o plantaram eram pequenos demais para seus pés. Condoídas com a situação, entidades de defesa dos direitos humanos do país inteiro exigiram rega mensal e somente uma poda por
ano.
"NATO" AZEVEDO
UM SINAL DO ALÉM
UM SINAL DO ALÉM
No início dos anos 70 a Era de Aquárius estava no auge, com os Estados Unidos da América exportando para o mundo a moda dos hippies e seu lema de paz e amor, enquanto torravam infantes e anciãos com napalm no Vietnam.
A "mídia" nacional abraçava com sofreguidão a mensagem do "flower power" yankee, do importado jargão "faça amor, não faça guerra" e explorava à exaustão os simbolos, as caras e os temas que os representavam lá fora.
Até nas TVs tupiniquins a febre de espiritualidade "fashion" que avassalava as mentes & corações da época tinha espaço especial, com a apresentação carnavalizante de médiuns de todo tipo, parapsicólogos, espíritas, videntes e macumbeiros assumidos, astrólogos e perceptivos variados entortando garfos e colheres ao vivo e (dizem) via "telinha" preto-e-branco, pois o monstrengo do tamanho de uma cômoda e com desbotadas cores que a substituiria era privilégio de uns poucos milionários.
Na então denominada "Vênus Platinada" pela imprensa, hoje teleemissora do "plim-plim", a "Discoteca do Chacrinha" era unanimidade em todo o país, destacando através das enormes câmeras as primeiras bundas que o Brasil admirou -- entre protestos veementes de mães ciosas, de ciumentas esposas e namoradas ofendidas -- para deleite do sexo oposto de qualquer idade.
Abelardo "Chacrinha" Barbosa, com uma visão muito à frente de seu tempo, fazia de seu programa uma salada mista onde tudo era possível... principalmente as coisas consideradas impossíveis. Assim, entre bacalhaus, "bichonas" do high society local, calouros horríveis ou maravilhosos, abacaxis, trapezistas, mágicos, artistas da música e do teatro, bananas, malucos e doidas de toda espécie, o "Fio Maravilha", as primeiras "sapatonas" assumidas, entre bundas, coxas e "vergonhas" quase à mostra sob as minúsculas microssaias das fornidas "chacrettes" pontificava o macunaímico e impressionante "Seu Sete da Lira".
Inquestionável precursor do "kitsch" "Zé do Caixão", "seu" Sete não trazia lira ou qualquer outro instrumento musical. Portava, sim, satânico tridente, cartola de mágico de cirquinho mambembe, vistosa capa de seda negra, esvoaçante e aterradora, com forro em carmim e imensa gola. (1)
Velhota portuguesa de bigodinho e tudo, "seu" Sete da Lira causava espanto, fazendo triunfal entrada na "Discoteca" a som de pesada macumba e tendo um séquito de seguidores ensandecidos a acompanhá-la. A baforar enorme charuto, teve espaço cativo no programa por longo tempo e nem o mais criativo dos pastores modernos imaginam o "frisson" que sua presença causava no auditório histérico ou mesmo nos "televizinhos", quase toda a população brasileira daquela época.
O garoto "Didi" morava, ou melhor, escondia-se na favela da Praia do Pinto (onde não havia praia alguma), espécie de cancro social a ofender as vistas e narizes da alta classe média do Leblon, distnto bairro da zona sul.
Entre vielas e becos da estreita favela -- milhares de barracos espremidos no exíguo espaço de 600 x 900 metros de área hiper-supervalorizada -- "Didi" nasceu e cresceu, sorriu e por vezes chorou... até que providencial incêndio jamais explicado extinguiu lares, sonhos e até algumas vidas e jogou "Didi" e seus amigos pros confins do subúrbio do Rio, Nova Iguaçu ou além.
Enquanto "seu" Sete da Lira enricava, abrindo "terreiros" nos bairros mais chiques, imitadores com ou sem competência inauguravam "casas de luz e fé", "searas de maria e josé" e arapucas semelhantes, algumas misturando asilo e templo num só local e faturando alto com a esperança alheia e a estranha procura por fé em prédios, objetos, eventos ou em seus promotores.
"Didi", agora "Dinho", tivera que abandonar o "bico" de gandula das bolas de tênis dos endinheirados no seleto Clube de Regatas do Flamengo, bem do lado da favela e, adiante, o destino o guindara à posição de "animador" das sessões espíritas de uma casa de repouso para velhinhos no Grajaú, três vezes por semana, além de esvaziar as "comadres" toda manhã e fazer outros serviços sujos no casarão, em troca de comida, dormida e uns trocados.
O doutor Nicolau, de ar distinto, cabelos grisalhos e gestos nobres, fôra certamente em outra encarnação um falido rei do café mas, na vida atual, era o sisudo condutor das sessões onde filhas e neas dos anciãos internados ali, além de beatas curiosas das redondezas, cumpriam o ritual de falar com (ou tentar ouvir) seus entes falecidos.
Em pouco tempo o esperto "Dinho" aprendeu os ossos do ofício, suportando incômoda posição no poeirento e abafado sótão, enquanto seus ouvidos atentos captavam as nuances da voz do "doutor" lá embaixo, seus pigarros, as breves batidas no copo d'água ou no chão, com o sapato.
O maestro do "metier" espírita e seu esplêndido aluno entendiam-se às mil maravilhas, como por música, com a vetusta eletrola arranhando riscados LPs de Chopin, Listz ou Brahms e, em dia mais solene, um raivoso Wagner. As correntes de aço dançavam no teto do salão, arrastadas por mão invisível, surrado piano de poucas teclas animava-se por instantes, sinos, gargalhadas, gemidos... havia de tudo para todos os anseios.
O velho "Nico" deliciava-se intimamentecom a atuação genial de seu discípulo oculto no teto, mas "Dinho" bocejaria de tédio alguns meses depois, por saber de cor e salteado os evangelhos todos, os testamentos novos e antigos, as perorações do Nicolau, seus truques e "deixas" (ai, que sono!) os "in memoriam" e "de profundis", convocações, súplicas, expulsões, etc.
O pior de tudo é que uma das beatas que não largavam o pé do "médium" -- balzaqueanas que o serviam fielmente de dia e das quais (dizem as más línguas) êle se servia à noite -- começou a desconfiar do rapaz. A "perua" cismou com o moleque de sorriso fácil e ar malandro e insinuou para o mestre que o jovem estava conseguindo roubar dinheiro do cofre das missões, que ficava à entrada do casarão, aos pés da enorme "estáuta" do Preto Velho.
O doutor não via como isso seria possível... a estreita boca não permitia passagem de dedos, de caneta ou instrumentos e o segredo do cofre estava bem guardado no fundo de sua memória. Mas o fato é que "Dinho" melhorava seu mísero "salário" mediante expedições noturnas bem sucedidas ao abarrotado cofre.
À chinesa, com dois pauzinhos de comer arroz "pescava" várias notas por vez. Aperfeiçoou o "trabalho" imantando velha "peixeira" cuja lâmina saía da estreita boca do cofre "enfeitada" com moedas de todos os valores, tamanhos e cores. A farra só findou quando a tesoureura-mor decidiu retirar do cofre as doações ao fim de cada sessão espírita.
Tal ação coincidiu com o desinteresse de "Dinho" por suas funções "celestiais", cada dia mais desatento com as marcações de Nicolau e sempre mais sonolento. Até que uma tarde, solitário morcego em passeio fora de hora deu um tremendo susto em "Dinho" que, desequilibrado, estatelou-se entre as esquadrias carcomidas que sustentavam o cinquentenário teto.
Tentou em vão segurar-se na viga mas o apavorado mamífero voador chocou-se com seu rosto e, com fenomenal berro, "Dinho" aterrisou na imensa mesa de linho branco e castiçais acesos. Um vendaval de poeira e madeirame podre acompanhou-lhe a queda, enquanto as velhotas que não corriam esbaforidas feito baratas tontas achavam-se desmaiadas em ridículas posições.
"Dinho" levantou num pulo só e voou porta afora, o pulmão em fogo, rosto e corpo enegrecidos, espécie de saci-pererê batendo os dentes de pavor, com o morcego horrendo a debater-se em todas as direções. Muitos viram no sucedido um sinal do Além... o menino era um enviado das trevas.
Quando as coisas acalmaram, o rapazote foi sumariamente posto na rua da amargura e voltou para a casa da mãe, lá onde o diabo perdeu as botas. Mas as lições aprendidas com o "artista" Nicolau lhe apontaram novo caminho para a sacrificada e paupérrima existência.
Com uma camisa social do sumido pai, folgada demais para êle, mantendo junto ao peito surrada Bíblia da mãe que êle jamais abrira, "Dinho" começou a pregar seu "evangelho" nas lamacentas esquinas de seu bairro, repetindo a "decoreba" que ouvira meses a fio e preenchendo com criatividade as eventuais lacunas.
Com a persistência dos desesperados arrebanhou adeptos, prosperou lentamente no início, mais tarde o sucesso surgiu como sol de verão e êle saiu finalmente das ruas para uma "boite"... digo, o ex-antro de vícios e pecados era agora a casa de Deus (?!), pátio de milagres e de testemunhos, com explosões de fé e, claro, com a imponente presença do cofre das missões.
Passaram-se inúmeros anos e o safenado e decrépito Nicolau, longe das atividades que lhe deram fama, num belo domingo abre o jornal e reconhece "Dinho", bem nutrido e ar feliz, falando à fanática multidão.
Acima da enorme foto, a manchete escandalosa:"PASTOR ALDYR LOTA ESTÁDIO COM SEUS FIÉIS" e uma insistente referência a sacos e sacos de dinheiro.
O velho "Nico" tem um "treco", fica completamente transtornado e, ao dar entrada na emergência do pronto-socorro, estã balbuciando sem parar: "Era sinal do Além... era sinal do Além"! Quanto ao pastor Aldyr... esse, vai muito bem, obrigado !
"NATO" AZEVEDO
1) NOTA DO AUTOR: embora o ator e cineasta José Mojica Marins tivesse seu programa exibido na TV TUPI entre 1967 e 68, o "pai de santo" SEU SETE DA LIRA já atendia nos terreiros da zona norte do Rio de Janeiro.
No início dos anos 70 a Era de Aquárius estava no auge, com os Estados Unidos da América exportando para o mundo a moda dos hippies e seu lema de paz e amor, enquanto torravam infantes e anciãos com napalm no Vietnam.
A "mídia" nacional abraçava com sofreguidão a mensagem do "flower power" yankee, do importado jargão "faça amor, não faça guerra" e explorava à exaustão os simbolos, as caras e os temas que os representavam lá fora.
Até nas TVs tupiniquins a febre de espiritualidade "fashion" que avassalava as mentes & corações da época tinha espaço especial, com a apresentação carnavalizante de médiuns de todo tipo, parapsicólogos, espíritas, videntes e macumbeiros assumidos, astrólogos e perceptivos variados entortando garfos e colheres ao vivo e (dizem) via "telinha" preto-e-branco, pois o monstrengo do tamanho de uma cômoda e com desbotadas cores que a substituiria era privilégio de uns poucos milionários.
Na então denominada "Vênus Platinada" pela imprensa, hoje teleemissora do "plim-plim", a "Discoteca do Chacrinha" era unanimidade em todo o país, destacando através das enormes câmeras as primeiras bundas que o Brasil admirou -- entre protestos veementes de mães ciosas, de ciumentas esposas e namoradas ofendidas -- para deleite do sexo oposto de qualquer idade.
Abelardo "Chacrinha" Barbosa, com uma visão muito à frente de seu tempo, fazia de seu programa uma salada mista onde tudo era possível... principalmente as coisas consideradas impossíveis. Assim, entre bacalhaus, "bichonas" do high society local, calouros horríveis ou maravilhosos, abacaxis, trapezistas, mágicos, artistas da música e do teatro, bananas, malucos e doidas de toda espécie, o "Fio Maravilha", as primeiras "sapatonas" assumidas, entre bundas, coxas e "vergonhas" quase à mostra sob as minúsculas microssaias das fornidas "chacrettes" pontificava o macunaímico e impressionante "Seu Sete da Lira".
Inquestionável precursor do "kitsch" "Zé do Caixão", "seu" Sete não trazia lira ou qualquer outro instrumento musical. Portava, sim, satânico tridente, cartola de mágico de cirquinho mambembe, vistosa capa de seda negra, esvoaçante e aterradora, com forro em carmim e imensa gola. (1)
Velhota portuguesa de bigodinho e tudo, "seu" Sete da Lira causava espanto, fazendo triunfal entrada na "Discoteca" a som de pesada macumba e tendo um séquito de seguidores ensandecidos a acompanhá-la. A baforar enorme charuto, teve espaço cativo no programa por longo tempo e nem o mais criativo dos pastores modernos imaginam o "frisson" que sua presença causava no auditório histérico ou mesmo nos "televizinhos", quase toda a população brasileira daquela época.
O garoto "Didi" morava, ou melhor, escondia-se na favela da Praia do Pinto (onde não havia praia alguma), espécie de cancro social a ofender as vistas e narizes da alta classe média do Leblon, distnto bairro da zona sul.
Entre vielas e becos da estreita favela -- milhares de barracos espremidos no exíguo espaço de 600 x 900 metros de área hiper-supervalorizada -- "Didi" nasceu e cresceu, sorriu e por vezes chorou... até que providencial incêndio jamais explicado extinguiu lares, sonhos e até algumas vidas e jogou "Didi" e seus amigos pros confins do subúrbio do Rio, Nova Iguaçu ou além.
Enquanto "seu" Sete da Lira enricava, abrindo "terreiros" nos bairros mais chiques, imitadores com ou sem competência inauguravam "casas de luz e fé", "searas de maria e josé" e arapucas semelhantes, algumas misturando asilo e templo num só local e faturando alto com a esperança alheia e a estranha procura por fé em prédios, objetos, eventos ou em seus promotores.
"Didi", agora "Dinho", tivera que abandonar o "bico" de gandula das bolas de tênis dos endinheirados no seleto Clube de Regatas do Flamengo, bem do lado da favela e, adiante, o destino o guindara à posição de "animador" das sessões espíritas de uma casa de repouso para velhinhos no Grajaú, três vezes por semana, além de esvaziar as "comadres" toda manhã e fazer outros serviços sujos no casarão, em troca de comida, dormida e uns trocados.
O doutor Nicolau, de ar distinto, cabelos grisalhos e gestos nobres, fôra certamente em outra encarnação um falido rei do café mas, na vida atual, era o sisudo condutor das sessões onde filhas e neas dos anciãos internados ali, além de beatas curiosas das redondezas, cumpriam o ritual de falar com (ou tentar ouvir) seus entes falecidos.
Em pouco tempo o esperto "Dinho" aprendeu os ossos do ofício, suportando incômoda posição no poeirento e abafado sótão, enquanto seus ouvidos atentos captavam as nuances da voz do "doutor" lá embaixo, seus pigarros, as breves batidas no copo d'água ou no chão, com o sapato.
O maestro do "metier" espírita e seu esplêndido aluno entendiam-se às mil maravilhas, como por música, com a vetusta eletrola arranhando riscados LPs de Chopin, Listz ou Brahms e, em dia mais solene, um raivoso Wagner. As correntes de aço dançavam no teto do salão, arrastadas por mão invisível, surrado piano de poucas teclas animava-se por instantes, sinos, gargalhadas, gemidos... havia de tudo para todos os anseios.
O velho "Nico" deliciava-se intimamentecom a atuação genial de seu discípulo oculto no teto, mas "Dinho" bocejaria de tédio alguns meses depois, por saber de cor e salteado os evangelhos todos, os testamentos novos e antigos, as perorações do Nicolau, seus truques e "deixas" (ai, que sono!) os "in memoriam" e "de profundis", convocações, súplicas, expulsões, etc.
O pior de tudo é que uma das beatas que não largavam o pé do "médium" -- balzaqueanas que o serviam fielmente de dia e das quais (dizem as más línguas) êle se servia à noite -- começou a desconfiar do rapaz. A "perua" cismou com o moleque de sorriso fácil e ar malandro e insinuou para o mestre que o jovem estava conseguindo roubar dinheiro do cofre das missões, que ficava à entrada do casarão, aos pés da enorme "estáuta" do Preto Velho.
O doutor não via como isso seria possível... a estreita boca não permitia passagem de dedos, de caneta ou instrumentos e o segredo do cofre estava bem guardado no fundo de sua memória. Mas o fato é que "Dinho" melhorava seu mísero "salário" mediante expedições noturnas bem sucedidas ao abarrotado cofre.
À chinesa, com dois pauzinhos de comer arroz "pescava" várias notas por vez. Aperfeiçoou o "trabalho" imantando velha "peixeira" cuja lâmina saía da estreita boca do cofre "enfeitada" com moedas de todos os valores, tamanhos e cores. A farra só findou quando a tesoureura-mor decidiu retirar do cofre as doações ao fim de cada sessão espírita.
Tal ação coincidiu com o desinteresse de "Dinho" por suas funções "celestiais", cada dia mais desatento com as marcações de Nicolau e sempre mais sonolento. Até que uma tarde, solitário morcego em passeio fora de hora deu um tremendo susto em "Dinho" que, desequilibrado, estatelou-se entre as esquadrias carcomidas que sustentavam o cinquentenário teto.
Tentou em vão segurar-se na viga mas o apavorado mamífero voador chocou-se com seu rosto e, com fenomenal berro, "Dinho" aterrisou na imensa mesa de linho branco e castiçais acesos. Um vendaval de poeira e madeirame podre acompanhou-lhe a queda, enquanto as velhotas que não corriam esbaforidas feito baratas tontas achavam-se desmaiadas em ridículas posições.
"Dinho" levantou num pulo só e voou porta afora, o pulmão em fogo, rosto e corpo enegrecidos, espécie de saci-pererê batendo os dentes de pavor, com o morcego horrendo a debater-se em todas as direções. Muitos viram no sucedido um sinal do Além... o menino era um enviado das trevas.
Quando as coisas acalmaram, o rapazote foi sumariamente posto na rua da amargura e voltou para a casa da mãe, lá onde o diabo perdeu as botas. Mas as lições aprendidas com o "artista" Nicolau lhe apontaram novo caminho para a sacrificada e paupérrima existência.
Com uma camisa social do sumido pai, folgada demais para êle, mantendo junto ao peito surrada Bíblia da mãe que êle jamais abrira, "Dinho" começou a pregar seu "evangelho" nas lamacentas esquinas de seu bairro, repetindo a "decoreba" que ouvira meses a fio e preenchendo com criatividade as eventuais lacunas.
Com a persistência dos desesperados arrebanhou adeptos, prosperou lentamente no início, mais tarde o sucesso surgiu como sol de verão e êle saiu finalmente das ruas para uma "boite"... digo, o ex-antro de vícios e pecados era agora a casa de Deus (?!), pátio de milagres e de testemunhos, com explosões de fé e, claro, com a imponente presença do cofre das missões.
Passaram-se inúmeros anos e o safenado e decrépito Nicolau, longe das atividades que lhe deram fama, num belo domingo abre o jornal e reconhece "Dinho", bem nutrido e ar feliz, falando à fanática multidão.
Acima da enorme foto, a manchete escandalosa:"PASTOR ALDYR LOTA ESTÁDIO COM SEUS FIÉIS" e uma insistente referência a sacos e sacos de dinheiro.
O velho "Nico" tem um "treco", fica completamente transtornado e, ao dar entrada na emergência do pronto-socorro, estã balbuciando sem parar: "Era sinal do Além... era sinal do Além"! Quanto ao pastor Aldyr... esse, vai muito bem, obrigado !
"NATO" AZEVEDO
1) NOTA DO AUTOR: embora o ator e cineasta José Mojica Marins tivesse seu programa exibido na TV TUPI entre 1967 e 68, o "pai de santo" SEU SETE DA LIRA já atendia nos terreiros da zona norte do Rio de Janeiro.
A ÚLTIMA CHANCE
A ÚLTIMA CHANCE
Temmiko Nashapa era nissei ou sansei (nem sei, que essas coisas são bem complicadas), nascido no coração de São Paulo, num pedacinho do Japão incrustado em terras "brasirêras", no orientalíssimo bairro da Liberdade.
Criado e instruído como seus ancestrais o foram, geração após geração, Temmiko abrasileirou-se com o tempo e a convivência com a "galera" da periferia "classe média pobre-pobre" e, apesar do calvário que as gozações e trocadilhos com seu nome lhe proporcionaram, fez muitos amigos, assimilando o linguajar e os trejeitos da rapaziada esperta da área.
Assim que pode, trocou seu belo nome de batismo por um sonoro "Fernando" e os hábitos de labor persistente e diário, herdados dos produtivos pais, pela certeza de que um só jogo ou aposta resolveria seu futuro. Pôz para funcionar sua inteligência privilegiada e, após longos meses de constante análise dos resultados das loterias, estava pronto para o sucesso.
Meteu-se a contragôsto no ramo da pastelaria, num restaurante chinês (oh, quanta humilhação !) denominado "Hakata's Town" e passou duros e intermináveis meses varrendo e lavando o chão, além de esvaziar cestos de lixo. Seus pais sequer sabiam desse "emprego", pois "Nando" -- conforme o chamava a turma de videogames e bailes "techno" -- saía de casa muito bem vestido, todas as manhãs.
O montante de parte dos salários economizados mês a mês crescia no cofrinho em forma de templo japonês e Fernando passava horas esquecidas "rezando" sobre a estrambótica casinha, porque até simpatias êle aprendera. Não andava debaixo de escadas, esconjurava gatos pretos e, de família budista, habituara-se ao "sacrilégio" de fazer o sinal da cruz diante de cemitérios. Enfim, estava irreconhecível !
Quando o valor acumulado após tantos meses de suor e cheiro de pastel queimado atingira a almejada quantia o ex-Temmiko Nashapa deu adeus à chapa de "hamburguers" e ôvo frito (fôra promovido!), deu uma vistosa "banana" para o antipático "china" que gerenciava a loja e pediu as contas, juntando o saldo da rescisão aos seus direitos trabalhistas garantidos por lei.
Chegara o tão sonhado momento...a conjunção dos astros estava quase em seu ponto ideal, sob a regência de Libra, belo nome a lembrar cifrões. As moedas do milenar I Ching cantaram seu doce futuro de opulência e esplendor e, culminando esse raro período benfazejo, para o "tupi-nipo" Fernando iniciara o Ano do Dragão, sua fase de sorte e sucesso.
Retirou da gaveta os trezentos cartões da Lotomania, um jogo oficial que virara mania no país inteiro. Aquelas apostas lhe consumiram semanas de estudos profundos, noites e madrugadas em claro, analisando tendências e possibilidades.
Investiu seus conhecimentos de álgebra e física, de logaritmos, relatividade e até mesmo geometria para construir apostas que cobrissem todas as probabilidades, não deixassem ao acaso nenhum tipo de resultado.
Desenhos verticais e horizontais, entrecruzados, perpendiculares, figuras de animais e aves, números marcados aleatóriamente, repetição de sorteios anteriores, os números mais e menos frequentes... tudo foi pensado, analisado meticulosamente e cravado "cientificamente".
Com 50 números jogados pareceu-lhe fácil acertar os 20 do sorteio oficial.As trezentas chances de fortuna rápida vibravam em suas amarelas mãos quando saíu do guichê de apostas. O resultado viria sábado à noite, via Internet, ou no domingo em todos os jornais do país.
Ademais, homem precavido, guardara verba suficiente para quatro semanas de apostas. Mesmo que a sorte de início lhe fosse madrasta, no fim do mês estaria rico. Uma vida de milionário era tão inevitável que Fernando não se abalou com o resultado da primeira semana, quando acertou alguns poucos cartões, com 16 pontos cada, o que representava em dinheiro uma micharia, a "bolada" só viria se acertasse todos os vinte números sorteados.
Na segunda semana, um breve instante de glória: 18 pontos num cartão, o dinheiro investido já lhe retornara, mas o que importava mesmo era dar "uma tacada" que mandasse para o espaço todos os problemas e preocupações. Contudo, quando o resultado da terceira semana saiu, seu ânimo abateu-se quase por inteiro.
Acertar aquilo era impossível, nem mago poderia prever aquele "desenho"... por isso, ficaram acumulados os prêmios maiores. Mesmo assim, emplacou 17 pontos em dois míseros cartões.
Fernando dera a si mesmo uma última chance, a derradeira; afinal, segundo o horóscopo chinês aquele era seu ano de realização e progresso. Acompanhou ansioso o sorteio via computador, direto da sede da CEF, bola por bola, com seu PC informando a cada segundo quantos dos seus 300 cartões estavam no páreo.
Os números saíam fáceis e o que era só pensamento positivo em Fernando transmutou-se de expectativa em certeza e, a seguir, num berro de samurai kamikaze, o coração a explodir no peito, a glória orgasmática a satisfazer o ego combalido.
Seu dia finalmente chegara ! Tremiam-lhe as pernas e os joelhos se entrechocavam, os braços se agitavam descontrolados, as maçãs do rosto balançavam, a casa toda estremecia... a capital de São Paulo assistia boquiaberta de espanto e de terror ao primeiro terremoto do século, transformando arranha-céus em geléia de concreto e aço e a sala do sorteio num pandemônio, com o teto de gesso desabando por completo e os computadores que registravam os números sorteados entrando em pane geral, virando "bolas" de fumaça e fogo.
Mais tarde, um boletim extra-oficial informaria à nação que o sorteio fôra anulado, com todas as apostas valendo para a semana seguinte. Nem a sanguinária bomba "Fat Man" teria feito um estrago tão devastador em Temmiko-Fernando. Ainda chorava um mar de lágrimas quando o mais estimado amigo adentrou seu quarto.
Entre guitarras, periféricos de computador, posters de gueixas e montanhas de livros do curso superior de eletrônica que abandonara para "trabalhar", "Nando" contou ao "General" -- o amigo era muito "mandão", daí o apelido -- seu segredo e sua desdita. Perdera mais de um ano de sua preciosa existência só para realizar aquele sonho e, agora, o cruel Destino lhe pregara aquela peça. Não queria saber mais do jogo... sua sorte acabara. Os deuses não lhe dariam outra chance!
Desfez-se dos 300 cartões e de suas respectivas apostas, dando tudo para o amigo. Celso ainda protestou: poderia ganhar desta vez, o que estava fazendo era loucura. "Nando" recusou todos os argumentos. O que quer que ganhasse, era seu. A sorte dele se fôra !
Oito dias depois a periferia da capital acordou em polvorosa... um jovem morador, dos mais humildes, acertara a sorte grande. Abiscoitara mais de meio milhão de reais, além de vários prêmios menores.
Quando a imprensa o procurou, Celso de Moraes, vulgo "General", confessou que ganhara as apostas de um amigo, desiludido com o adiamento do concurso que já o premiara.
Perguntado se devolveria o fabuloso prêmio ao tresloucado rapaz, respondeu sem pestanejar:
-- "De jeito nenhum... êle fez estes jogos diversas vezes e não ganhou nada. Quando acertou, cancelaram o sorteio. Vai ver a sorte tinha que ir era prá mim mesmo. Só vou lhe dar uma bela moto... o "Nando" adora uma Harley Davidson incrementada! E despediu-se feliz e faceiro, com a multidão em festa atrás de si.
"NATO" AZEVEDO
Temmiko Nashapa era nissei ou sansei (nem sei, que essas coisas são bem complicadas), nascido no coração de São Paulo, num pedacinho do Japão incrustado em terras "brasirêras", no orientalíssimo bairro da Liberdade.
Criado e instruído como seus ancestrais o foram, geração após geração, Temmiko abrasileirou-se com o tempo e a convivência com a "galera" da periferia "classe média pobre-pobre" e, apesar do calvário que as gozações e trocadilhos com seu nome lhe proporcionaram, fez muitos amigos, assimilando o linguajar e os trejeitos da rapaziada esperta da área.
Assim que pode, trocou seu belo nome de batismo por um sonoro "Fernando" e os hábitos de labor persistente e diário, herdados dos produtivos pais, pela certeza de que um só jogo ou aposta resolveria seu futuro. Pôz para funcionar sua inteligência privilegiada e, após longos meses de constante análise dos resultados das loterias, estava pronto para o sucesso.
Meteu-se a contragôsto no ramo da pastelaria, num restaurante chinês (oh, quanta humilhação !) denominado "Hakata's Town" e passou duros e intermináveis meses varrendo e lavando o chão, além de esvaziar cestos de lixo. Seus pais sequer sabiam desse "emprego", pois "Nando" -- conforme o chamava a turma de videogames e bailes "techno" -- saía de casa muito bem vestido, todas as manhãs.
O montante de parte dos salários economizados mês a mês crescia no cofrinho em forma de templo japonês e Fernando passava horas esquecidas "rezando" sobre a estrambótica casinha, porque até simpatias êle aprendera. Não andava debaixo de escadas, esconjurava gatos pretos e, de família budista, habituara-se ao "sacrilégio" de fazer o sinal da cruz diante de cemitérios. Enfim, estava irreconhecível !
Quando o valor acumulado após tantos meses de suor e cheiro de pastel queimado atingira a almejada quantia o ex-Temmiko Nashapa deu adeus à chapa de "hamburguers" e ôvo frito (fôra promovido!), deu uma vistosa "banana" para o antipático "china" que gerenciava a loja e pediu as contas, juntando o saldo da rescisão aos seus direitos trabalhistas garantidos por lei.
Chegara o tão sonhado momento...a conjunção dos astros estava quase em seu ponto ideal, sob a regência de Libra, belo nome a lembrar cifrões. As moedas do milenar I Ching cantaram seu doce futuro de opulência e esplendor e, culminando esse raro período benfazejo, para o "tupi-nipo" Fernando iniciara o Ano do Dragão, sua fase de sorte e sucesso.
Retirou da gaveta os trezentos cartões da Lotomania, um jogo oficial que virara mania no país inteiro. Aquelas apostas lhe consumiram semanas de estudos profundos, noites e madrugadas em claro, analisando tendências e possibilidades.
Investiu seus conhecimentos de álgebra e física, de logaritmos, relatividade e até mesmo geometria para construir apostas que cobrissem todas as probabilidades, não deixassem ao acaso nenhum tipo de resultado.
Desenhos verticais e horizontais, entrecruzados, perpendiculares, figuras de animais e aves, números marcados aleatóriamente, repetição de sorteios anteriores, os números mais e menos frequentes... tudo foi pensado, analisado meticulosamente e cravado "cientificamente".
Com 50 números jogados pareceu-lhe fácil acertar os 20 do sorteio oficial.As trezentas chances de fortuna rápida vibravam em suas amarelas mãos quando saíu do guichê de apostas. O resultado viria sábado à noite, via Internet, ou no domingo em todos os jornais do país.
Ademais, homem precavido, guardara verba suficiente para quatro semanas de apostas. Mesmo que a sorte de início lhe fosse madrasta, no fim do mês estaria rico. Uma vida de milionário era tão inevitável que Fernando não se abalou com o resultado da primeira semana, quando acertou alguns poucos cartões, com 16 pontos cada, o que representava em dinheiro uma micharia, a "bolada" só viria se acertasse todos os vinte números sorteados.
Na segunda semana, um breve instante de glória: 18 pontos num cartão, o dinheiro investido já lhe retornara, mas o que importava mesmo era dar "uma tacada" que mandasse para o espaço todos os problemas e preocupações. Contudo, quando o resultado da terceira semana saiu, seu ânimo abateu-se quase por inteiro.
Acertar aquilo era impossível, nem mago poderia prever aquele "desenho"... por isso, ficaram acumulados os prêmios maiores. Mesmo assim, emplacou 17 pontos em dois míseros cartões.
Fernando dera a si mesmo uma última chance, a derradeira; afinal, segundo o horóscopo chinês aquele era seu ano de realização e progresso. Acompanhou ansioso o sorteio via computador, direto da sede da CEF, bola por bola, com seu PC informando a cada segundo quantos dos seus 300 cartões estavam no páreo.
Os números saíam fáceis e o que era só pensamento positivo em Fernando transmutou-se de expectativa em certeza e, a seguir, num berro de samurai kamikaze, o coração a explodir no peito, a glória orgasmática a satisfazer o ego combalido.
Seu dia finalmente chegara ! Tremiam-lhe as pernas e os joelhos se entrechocavam, os braços se agitavam descontrolados, as maçãs do rosto balançavam, a casa toda estremecia... a capital de São Paulo assistia boquiaberta de espanto e de terror ao primeiro terremoto do século, transformando arranha-céus em geléia de concreto e aço e a sala do sorteio num pandemônio, com o teto de gesso desabando por completo e os computadores que registravam os números sorteados entrando em pane geral, virando "bolas" de fumaça e fogo.
Mais tarde, um boletim extra-oficial informaria à nação que o sorteio fôra anulado, com todas as apostas valendo para a semana seguinte. Nem a sanguinária bomba "Fat Man" teria feito um estrago tão devastador em Temmiko-Fernando. Ainda chorava um mar de lágrimas quando o mais estimado amigo adentrou seu quarto.
Entre guitarras, periféricos de computador, posters de gueixas e montanhas de livros do curso superior de eletrônica que abandonara para "trabalhar", "Nando" contou ao "General" -- o amigo era muito "mandão", daí o apelido -- seu segredo e sua desdita. Perdera mais de um ano de sua preciosa existência só para realizar aquele sonho e, agora, o cruel Destino lhe pregara aquela peça. Não queria saber mais do jogo... sua sorte acabara. Os deuses não lhe dariam outra chance!
Desfez-se dos 300 cartões e de suas respectivas apostas, dando tudo para o amigo. Celso ainda protestou: poderia ganhar desta vez, o que estava fazendo era loucura. "Nando" recusou todos os argumentos. O que quer que ganhasse, era seu. A sorte dele se fôra !
Oito dias depois a periferia da capital acordou em polvorosa... um jovem morador, dos mais humildes, acertara a sorte grande. Abiscoitara mais de meio milhão de reais, além de vários prêmios menores.
Quando a imprensa o procurou, Celso de Moraes, vulgo "General", confessou que ganhara as apostas de um amigo, desiludido com o adiamento do concurso que já o premiara.
Perguntado se devolveria o fabuloso prêmio ao tresloucado rapaz, respondeu sem pestanejar:
-- "De jeito nenhum... êle fez estes jogos diversas vezes e não ganhou nada. Quando acertou, cancelaram o sorteio. Vai ver a sorte tinha que ir era prá mim mesmo. Só vou lhe dar uma bela moto... o "Nando" adora uma Harley Davidson incrementada! E despediu-se feliz e faceiro, com a multidão em festa atrás de si.
"NATO" AZEVEDO
MERCADORIA DE NATAL
MERCADORIA DE NATAL
Vinham, Celso e seu irmão, pela estradinha lamacenta rumo ao seu casebre na "invasão" Boa Vista -- espécie de favela melhorada, comum no norte -- quando loatidos esganiçados os alertaram para a gorda vira-lata que lhes cheirava os calcanhares.
Atrás dela seguia um menino de uns dez anos, moreno brejeiro com os olhos de japonês que denunciavam sua ascendência indígena, sobraçando um pacotte de verduras. Ambos já o conheciam, por se tratar do irmão de um jovem branquelo que, vez ou outra, levava uma bicicleta para consertos na casa dos irmãos e, quando o pequeno ía junto, trocavam breves palavras.
Porém, naquele fim de tarde puderam conversar por longo tempo e conheceram um pouco do confuso mundo onde o pequeno Márcio vivia ou tentava fazê-lo, para ser mais exato. Êle voltara da ingrata missão de ter que, por todos os meios e modos, livrar-se nas ruas do bairro de uma cadelinha grávida, caso contrário dormiria do lado de fora da casa.
Explicou com voz chorosa que, por mais longe que a levasse, ela sempre descobria o caminho de volta. Passou-lhes pela cabeça ficar com a bichinha mas como já possuíam uma cadela com filhotes, certamente ambas viveriam às turras. Separaram-se do petiz, frustrados em não poder ajudá-lo de nenhuma forma.
A noite, com seus dentes negros e úmidos, abocanhou os barracos. O tempo devorou vários meses, a "folhinha" na parede emagreceu visívelmente (e Celso com ela) e, quando deu por si, já estavam em dezembro, fim de anos e de década.
Nesse ínterim, êle cruzara algumas vezes pela mãe do menino -- uma baixinha de voz suave e andar delicado, que lembrava a mãe-ursa das estorinhas infantis -- passeando com sua sacola de perfumes e ervas aromáticas, que vendia de casa em casa.
No início da semana de Natal, período em que decidimos visitar pessoas as mais diversas no afã de desejar isto ou aquilo com o ar mais cretino do mundo, lá foi Celso bater à porta de Mr. Raymond Stern, escritor famoso no bairro e a quem não via a algum tempo.
Eis que se depara com dona Ursa, digo, com a mãe do menino em animado "papo" com o dono da casa e dois amigos artistas que o visitavam na ocasião. E chegou bem no meio de estranha conversa, com a figura "mignon" a insistir:
-- Então, o sr. vai querer ou não? Diga logo, que eu trago amanhã mesmo... até as roupas !
-- Bem, não posso decidir assim. Tenho que pensar por uns dias. Isso não é coisa que a gente aceite de uma hora para outra !
-- Ah, então o sr. não quer. Se quizesse mesmo levava na hora !
-- Não é bem isso. É que eu gostaria de conversar com o menino primeiro. Se êle disser que quer ficar, tudo bem. Arranjo uma boa escola para êle e, nos fins de semana, êle vem pass...
-- Mas, aquele garoto é "léso". Êle nem sabe o que quer !
-- Pois eu não concordo!, bradou Raymond, com voz estridente. Conversei com êle um bom tempo e o achei muito inteligente. A senhora nâo pode falar assim do menino.
Só então Celso percebeu que aquela doce "alemãzinha" estava praticamente negociando o destino do filho que, segundo soube depois, era fruto de um casamento que ela detestara desde o seuu início, talvez porque o marido era um tanto tostado para os padrões sociais (leia-se raciais) do país.
Manteve-se calado mas fuzilou-a com furibundo olhar "seca pimenteira" enquanto mentalmente lhe rogava todas as pragas que os exús truxeram à sua memória.
Percebendo que o ambiente não lhe era proprício e que todos visivelmente o censuravam a megera, com os olhinhos miúdos a cintilar atrás de grossas lentes, despediu-se.
-- Bem, já que o sr. não quer mesmo o menino, eu dou para outro... e voou porta afora, temendo reações.
Na véspera do Natal Celso encontrou-a novamente na casa de Mr. Raymond oferecendo perfumes mas não lhe dirigiu palavra e, após ela sair, seu amigo lhe confidenciou que a mãe já entregara o menino para uma família qualquer. O coração de Celso quase gelou pois, tendo passado toda sua infância longe dos pais, isolado em colégios internos, sabia como o garoto estava se sentindo.
A sagrada noite natalina cobriu com seu negro manto os casebres da "invasão" ainda sem as benesses da energia elétrica e a chuva fina que prenuncia o inverno amazônico marcava nos telhados de zinco -- como grãos de areia de colossal ampulheta -- os muitos segundos de íntima solidão, à luz de fantasmagórica vela.
Próximo dali, um cão vermelho esquelético e histérico uivava ao relento, indeciso entre manter a fidelidade natural ao seu dono ou retribuir o ódio que este lhe devotava.
A desgraça do vira-lata trouxe à lembrança de Celso o drama do menino, isolado em algum quarto distante, cercado de carinhos estranhos e sorrisos semelhantes a esgares.
Num barraco no final da viela onde Celso "se esconde" a mãe (?!) certamente preparava-se, entre beijos e bebidas, para "fazer" outro Márcio, queira Deus mais branquinho que essa malfadada criança.Era Natal... paz na Terra aos homens de boa vontade !
"NATO" AZEVEDO
Vinham, Celso e seu irmão, pela estradinha lamacenta rumo ao seu casebre na "invasão" Boa Vista -- espécie de favela melhorada, comum no norte -- quando loatidos esganiçados os alertaram para a gorda vira-lata que lhes cheirava os calcanhares.
Atrás dela seguia um menino de uns dez anos, moreno brejeiro com os olhos de japonês que denunciavam sua ascendência indígena, sobraçando um pacotte de verduras. Ambos já o conheciam, por se tratar do irmão de um jovem branquelo que, vez ou outra, levava uma bicicleta para consertos na casa dos irmãos e, quando o pequeno ía junto, trocavam breves palavras.
Porém, naquele fim de tarde puderam conversar por longo tempo e conheceram um pouco do confuso mundo onde o pequeno Márcio vivia ou tentava fazê-lo, para ser mais exato. Êle voltara da ingrata missão de ter que, por todos os meios e modos, livrar-se nas ruas do bairro de uma cadelinha grávida, caso contrário dormiria do lado de fora da casa.
Explicou com voz chorosa que, por mais longe que a levasse, ela sempre descobria o caminho de volta. Passou-lhes pela cabeça ficar com a bichinha mas como já possuíam uma cadela com filhotes, certamente ambas viveriam às turras. Separaram-se do petiz, frustrados em não poder ajudá-lo de nenhuma forma.
A noite, com seus dentes negros e úmidos, abocanhou os barracos. O tempo devorou vários meses, a "folhinha" na parede emagreceu visívelmente (e Celso com ela) e, quando deu por si, já estavam em dezembro, fim de anos e de década.
Nesse ínterim, êle cruzara algumas vezes pela mãe do menino -- uma baixinha de voz suave e andar delicado, que lembrava a mãe-ursa das estorinhas infantis -- passeando com sua sacola de perfumes e ervas aromáticas, que vendia de casa em casa.
No início da semana de Natal, período em que decidimos visitar pessoas as mais diversas no afã de desejar isto ou aquilo com o ar mais cretino do mundo, lá foi Celso bater à porta de Mr. Raymond Stern, escritor famoso no bairro e a quem não via a algum tempo.
Eis que se depara com dona Ursa, digo, com a mãe do menino em animado "papo" com o dono da casa e dois amigos artistas que o visitavam na ocasião. E chegou bem no meio de estranha conversa, com a figura "mignon" a insistir:
-- Então, o sr. vai querer ou não? Diga logo, que eu trago amanhã mesmo... até as roupas !
-- Bem, não posso decidir assim. Tenho que pensar por uns dias. Isso não é coisa que a gente aceite de uma hora para outra !
-- Ah, então o sr. não quer. Se quizesse mesmo levava na hora !
-- Não é bem isso. É que eu gostaria de conversar com o menino primeiro. Se êle disser que quer ficar, tudo bem. Arranjo uma boa escola para êle e, nos fins de semana, êle vem pass...
-- Mas, aquele garoto é "léso". Êle nem sabe o que quer !
-- Pois eu não concordo!, bradou Raymond, com voz estridente. Conversei com êle um bom tempo e o achei muito inteligente. A senhora nâo pode falar assim do menino.
Só então Celso percebeu que aquela doce "alemãzinha" estava praticamente negociando o destino do filho que, segundo soube depois, era fruto de um casamento que ela detestara desde o seuu início, talvez porque o marido era um tanto tostado para os padrões sociais (leia-se raciais) do país.
Manteve-se calado mas fuzilou-a com furibundo olhar "seca pimenteira" enquanto mentalmente lhe rogava todas as pragas que os exús truxeram à sua memória.
Percebendo que o ambiente não lhe era proprício e que todos visivelmente o censuravam a megera, com os olhinhos miúdos a cintilar atrás de grossas lentes, despediu-se.
-- Bem, já que o sr. não quer mesmo o menino, eu dou para outro... e voou porta afora, temendo reações.
Na véspera do Natal Celso encontrou-a novamente na casa de Mr. Raymond oferecendo perfumes mas não lhe dirigiu palavra e, após ela sair, seu amigo lhe confidenciou que a mãe já entregara o menino para uma família qualquer. O coração de Celso quase gelou pois, tendo passado toda sua infância longe dos pais, isolado em colégios internos, sabia como o garoto estava se sentindo.
A sagrada noite natalina cobriu com seu negro manto os casebres da "invasão" ainda sem as benesses da energia elétrica e a chuva fina que prenuncia o inverno amazônico marcava nos telhados de zinco -- como grãos de areia de colossal ampulheta -- os muitos segundos de íntima solidão, à luz de fantasmagórica vela.
Próximo dali, um cão vermelho esquelético e histérico uivava ao relento, indeciso entre manter a fidelidade natural ao seu dono ou retribuir o ódio que este lhe devotava.
A desgraça do vira-lata trouxe à lembrança de Celso o drama do menino, isolado em algum quarto distante, cercado de carinhos estranhos e sorrisos semelhantes a esgares.
Num barraco no final da viela onde Celso "se esconde" a mãe (?!) certamente preparava-se, entre beijos e bebidas, para "fazer" outro Márcio, queira Deus mais branquinho que essa malfadada criança.Era Natal... paz na Terra aos homens de boa vontade !
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