sábado, 18 de abril de 2009

O OLHAR PENETRANTE DA NOITE

O OLHAR PENETRANTE DA NOITE

Diz um ditado popular que "de noite, todos os gatos são pardos". Isso, claro, quando se fala de madrugadas em cidades ou mesmo vilas de alguma forma iluminadas. A noite na floresta -- e numa selva onde até em pleno dia mal se vislumbra uma nesga de céu -- é um mar de enganos, no qual gatos e tudo o mais "somem" ou se transformam em "espíritos" a assombrar mortos e vivos.
O "silêncio da noite na floresta" é só mais um dos muitos equívocos que encontramos nos livros escolares ou em obras de quem nunca se deparou com a necessidade de passar longas (e tenebrosas) horas sem enxergar mais que alguns palmos além do nariz, ouvindo por todos os lados a algaravia "ensurdecedora" de vozes, gritos e sussurros de seres noturnos cujas formas a gente sequer imagina quais sejam.

Na selva amazônica, mesmo devastada e já sem o antigo esplendor, a mata tem corpo, tem garras, hálito gelado e olhos horripilantes, hipnóticos, que atraem. Toca sua nuca com seus dedos gosmentos, enquanto bafeja pragas em seu ouvido, preparando o espírito do invasor para os terrores que o aguardam a cada instante e a cada passo.
Com seu poder de fada maligna transmuta velhos galhos apodrecidos em serpentes semoventes, o canto do bacurau em aviso de mau agouro, o pio da "rasga-mortalha" em epitáfio sonoro para aquele que a terra e seus vermes hão de comer.
Agindo bem orquestrados sob as ordens da Noite, mãe e protetora, tudo se une contra quem invade seus domínios: víboras e escorpiões sob as folhas secas no chão, espinheiros venenosos com suas cobras à meia altura, além de morcegos, carapanãs, maruíns, varejeiras e demais seres alados.

Çandrowall dizia que a noite tem olhos, olhar profundo e ameaçador, que era preciso pedir licença para adentrar seu reino, penetrar em sua casa. Porém, Çandrowall não era como os demais caboclos da redondeza, tinha medo da noite e pro isso via coisas onde ninguém via nada. Fôra criado na barra da saia da mãe, único filho homem entre tantas mulheres e lhe coube por destino cuidar da velha, quando esta nem velha era.E foi ficando... rodando como pinto novo entre panelas e afazeres bem femininos, enquanto suas irmãs preparavam-se para procriarem, treinando desde "gititas", ocultas entre a imensidão de mata e sob a vista descuidada de micos, lebres e passarinhos.
E foi ficando... cercado de preocupações caseiras, enquanto machos iguais a êle dedicavam-se a caçar vez ou outra, a pescar quase sempre, dividindo as semanas do ano com ruidosas "peladas" dominicais regadas a muito "goró", "mé", "branquinha".

Contudo, se a vida pacata o diminuía perante os demais, o livrava de picadas de mosquitos e de serpentes peçonhentas durante as vigílias nas trilhas das caças, a fome atroz amenizada com farinha e fumo, além do calor infernal, ainda maior após a "meia hora". Cuidar da casa também o salvava do terrível reumatismo mais adiante, herança de dias inteiros de pescaria "na montaria" alagada, os dedos dos pés "ingilhadus" após tantas horas "nadando" em água fria.
Bellinda, irmã mais velha de Çandrowall, era mulher de muitos homens, com 3 filhos de 4 pais, pois nem ela sabia ao certo quem fizera o menorzinho. Xodó maior do irmão, que sempre lhe dedicava a melhor parte do bôlo de tapioca, a primeira cuia de tacacá, o suco mais grosso da bacaba, Bellinda se transformara no tormento noturno do caboclo, algoz de seus sonhos mais lúbricos, terror de muitas noites insone.Em outros cantos, em outras tantas casas as coisas eram mais fáceis e quase todos se iniciavam com os parentes mais próximos, sobrinhas com os tios mais velhos, primas com primos até, quando o apelo animal se tornava avassalador e irresistível... "que mulher nasceu prá isso mesmo".

Entretanto, Çandrowall era tímido demais para passos tão ousados e, consumido pelo desejo não concretizado, foi-se desmilinguindo, emagrecendo a olhos vistos, mais parecia um peixe subnutrido. Se já não fazia bela figura, desengonçado e branquelo em meio a homenzarrões tostados de sol, esquálido seu rosto ossudo e anguloso destacava o ridículo bigodinho à la Hiltler.
Não mais saía de casa, escondendo-se no paiol sempre que a idosa mãe recebia visitas. Seus devaneios com o corpo da mana se acentuaram e, quando foi morar sozinha nos confins do terreno da família, Çandrowall arrumava pretextos para visitá-la. Acostumara-se, nos tempos em que dormia ao lado da sensual morena índia, a ir para o quintal coberto de sombras durante a madrugada, sempre que o corpo, torturado por desejos insanos, apontava seu apêndice entumescido para a fonte de seus anseios mais profundos.

Daí, dialogando em pensamento com a Noite, desfilando seu rosário de queixumes, confessando-lhe as mais secretas frustrações, foi vislumbrando nela a amiga, a companheira de solidão, a ouvinte ideal. Por fim, o olhar penetrante da Noite, lascivo e irresistível como o de Bellinda, acabou por cativá-lo. Sentiu o calor de seu manto negro aquecer as entranhas, seus dedos gelados causando-lhe calafrios de prazer e, ouvindo repetidas vezes seu chamado, acabou acedendo a seu silencioso convite.
Com o melhor vestido de Bellinda num saco plástico e uma considerável dose de coragem que nunca antes tivera, Çandrowall penetrou com respeito e receio no corpo da Noite, tateando cada centímetro daquela pele verde-negra e avançando ofegante até o âmago daquela massa escura e folhosa.

A Noite gemia e arfava, sussurrava adjetivos de incentivo e gritava advérbios de prazer. Çandrowall embranhava-se seduzido e delirante por entre as artérias vegetais, até que topou com a alma da Noite, nua em pêlo a seus pés, seios macios e tesos como os de Bellinda, o colo lindo e sedoso como o dela, as nádegas salientes e latejantes como eram as de Bellinda, quando êle a "brechava" (1) em pleno banho, "tardezinhas".
Recobriu a Noite com vestido da irmã, que lhe coube como luva e deitou-se sobre seu belo corpo como um cão no cio, copulando enlouquecido repetidas vezes, o vestido de Bellinda a encharcar de sêmen há tanto tempo represeado. Quando deu por si, diversos olhos famintos e aterradores o fitavam com ar de silenciosa reprovação, seres das trevas a mirar severos o animal-homem. O medo invadiu-lhe o corpo enfraquecido e Çandrowall subiu espavorido na primeira árvore que encontrou, tremendo feito palma ao vento entre o cipoal que enlaçava a frondosa planta.

A Noite, serena e fria, de olhar distante e semblante triste, afastou-se dele, sumindo na bruma da madrugada. O vilarejo amanheceu em polvorosa, com a velha mãe agitada com a ausência do filho. Fôra bem cedo à casa de Belllinda mas seu irmão não passara a noite anterior lá.
Os confinantes todos e os parentes das redondezas foram alertados, pois Çandrowall jamais dormira um só dia fora de casa. Quem ía para o roçado era avisado, bem como os barqueiros, pescadores e os que levavam produtos para vender lá na cidade.

Toparam com Çandrowall à tardinha, balançando desnudo dependurado a um grosso galho de enorme mangueira, com um palmo de língua azulada, os olhos esbugalhados pela presença da morte, a rude embira enrolada no frágil pescoço como imensa sucuriju esverdeada.
Logo abaixo do cadáver, um belo vestido cobria tronco podre, em tudo semelhante ao corpo de esguia donzela.

"NATO" AZEVEDO

OBS.: 1) "brechava" -- no linguajar amazônico -- quer dizer espiava, olhava escondido.

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