MANJAR CELESTIAL
Diz um velho ditado popular que "quem narra um conto aumenta um ponto" mas, no presente caso, aumentei em muito as 3 ou 4 linhas encontradas num velho alfarrábio, que registrava para a posteridade as peripécias e os valorosos feitos de um desbravador jesuita nas plagas até então desconhecidas da Terra do Pau-Brasil... e de outros paus menos votados.
Surgia mais um sol primaveril a aquecer os costados floridos do gigante deitado eternamente em berço esplêndido e o Novo Mundo descobria, boquiaberto de espanto, que havia mais que água e gaivotas ao norte da linha do Equador.
Havia homens barbudos e mal-cheirosos, enrolados em toneladas de tecidos coloridos, vindos meio século antes em enormes "pirogas" movidas a velas & cordames, para convencer canibais em pêlo a cobrir suas "vergonhas" e, por fim, a crer que outro deus maior do que Tupã exigia a construção de imensas ocas onde ninguém morava, além de estátuas e cruzes.
Frei Barnabé Tello recebeu a dádiva divina de ser um dos primeiros missionários a pisar nas terras até então pagãs e começou com presteza uma abençoada catequese que prosperou de tal maneira que quase aposentou o temido pajé da tribo dos patas-chocas, no litoral baiano, reduzido depois da intromissão do jesuíta a mero curandeiro receitador de mezinhas e garrafadas, isto para não ficar desempregado pois a Igreja sempre se preocupou com a classe trabalhadora.
Muita gente na aldeia admirava aquele espantalho esquelético, de olhar perdido na distância, a mesma grosseira e surrada batina o ano inteiro, se sacrificando em prol de todos, sem jamais pensar em si. A taba ficara famosa nas redondezas com a presença e as realizações do sacerdote, algumas curas milagrosas segundo a plebe ignara, além de reformas gerais em tudo.
Contudo, nem todos estavam satisfeitos com o andar... da carruagem, digo, do caraíba invasor, entre êles o velho chefe, tuxaua de muitas luas, o cacique "Raposa Vermelha", infeliz por ver extintos seus mais gratos costumes como o de fazer e beber cauím, andar como Adão no Paraíso (e não com aqueles trapos ridículos), ter várias concubinas, fora a deliciosa tradição de desvirginar cunhãs por diversos machos.
Nayara, filha única e dileta do cacique era um esplendor, deusa feminina e bela, orgulho da tribo, uma amazona completa, guerreira sem igual na região, cantada em verso e prosa. Foi o padre bater os iluminados olhos na beldade e jurar a si mesmo conquistá-la para a seara do Senhor, seu mais agradável troféu a culminar um trabalho de catequese que já durava dez anos.
O frade acompanhara o desabrochar daquela cobiçada flôr das selvas, com o homem dentro de si quase desperto ao admirar as belas formas sendo acariciadas pelas águas, no banho diário no rio da aldeia.
Nestas horas, o crucifixo ardia-lhe sobre o peito hirsuto, enquanto seu voto de castidade naufragava sobre sensuais ondas de pensamentos impuros e desejos inconfessáveis. Nayara não lhe era de todo indiferente, o jesuita servia a seus propósitos de causar ciúmes aos maiorais da tribo, entre os quais estaria seu futuro esposo.
Daí, frequentemente acompanhava o pregador em suas andanças e catequeses, ouvia mortificada a lenga-lenga religiosa e, vez ou outra, frequentava o ritual litúrgico, do qual não entendia patavina. Já Frei Barnabé, fiel a seu juramento, sepultava nos porões do inconsciente o prazer sexual que sua companhia lhe trazia.
Sumiram no horizonte diversos invernos, Nayara casou, teve filhos que o frade batizou com a graça de Deus e, com o falecimento do idoso pai, a temida amazona passou a reinar, assistida pelo marido, que em tudo a ouvia e seguia.
Como primeiro decreto Nayara pôz meia aldeia à disposição do missionário e ela mesma transformou-se na maior das devotas, não perdendo uma missa sequer. O pajé foi "promovido" a varredor de vielas da taba, enquanto a guerreira armava os espíritos para tornar os patas-chocas o terror daquela área.
A pedido do frade, a aldeia encheu-se de gentios capturados em tribos vizinhas e de negros dos primeiros quilombos que o Nordeste viu nascer, todos "empregados" a serviço do Senhor.
Com a força escrava construi-se o primeiro colégio da região -- pago, é claro, e só para os filhos dos "galegos" -- além de uma rendosa usina de açúcar, padaria, hospital, um ferreiro e a suntuosa Matriz, marco da nóvel província, tudo para a glória de Deus.
Até que um dia... um Deus certamente canhoto, escrevendo torto por barrocas linhas, fez com que Nayara voltasse de uma daquelas refregas mortalmente ferida, o fatal curare da flecha assassina a corroer-lhe o último sôpro de vida.
De nada adiantou o emprêgo dos renomados remédios trazidos de Coimbra ou o quinino e a morfina importados de França. Nem as rezas do decrépito pajé, suas defumações e emplastros resolveram qualquer coisa.
Já nos estertores da morte, logo após a extrema-unção, a jovem sussurra ao jesuita seu último pedido, o derradeiro desejo, o testemunho mais sincero:
-- "Meu bom homem, daria tudo o que fui na vida, a fama e as conquistas, o que tenho e o que fiz, trocaria minha fé por um dedinho gordinho de um curumim caraíba bem assado, com ervas aromáticas e pimenta brava. Que o seu Deus me perdoe... é isso o que eu quero"!
O jesuíta deu um urro de estupor, enquanto o céu caía-lhe sobre a encanecida cabeça e o chão lhe faltava sob os maltratados pés. Acordou "lelé", biruta, resmungando frases desconexas em latim, grego e francês.
A balzaquiana Nayara foi sepultada em rica urna funerária, com honras de cacique e tomaram as rédeas do próspero vilarejo indígena o antes desmoralizado pajé e o viúvo da índia. O missionário macambúzio foi posto a correr do local a tacape, a escravaria libertada, tudo o mais destruído e, pouco tempo depois, não havia um só sinal do homem branco na aldeia, exceto um ou outro vocábulo em bom vernáculo.
Quando uma nova caravela aportou à região os silvícolas rasparam os caldeirões enferrujados pelo desuso, fizeram esplêndida recepção aos navegantes com iguarias e frutas e, depois, os exterminaram todos, inclusive uma espécie de pavão bem alimentado que os demais tratavam com cerimônia e ao qual chamavam de "Dom Sardinha".
O ex-bispo ficou para sobremesa e aos canibais empanturrados o "acepipe" caraíba tinha o suave sabor de um manjar celestial.
Nayara, presente em espírito, deliciou-se com a cena !
"NATO" AZEVEDO
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