quarta-feira, 22 de abril de 2009

UM SINAL DO ALÉM

UM SINAL DO ALÉM

No início dos anos 70 a Era de Aquárius estava no auge, com os Estados Unidos da América exportando para o mundo a moda dos hippies e seu lema de paz e amor, enquanto torravam infantes e anciãos com napalm no Vietnam.
A "mídia" nacional abraçava com sofreguidão a mensagem do "flower power" yankee, do importado jargão "faça amor, não faça guerra" e explorava à exaustão os simbolos, as caras e os temas que os representavam lá fora.

Até nas TVs tupiniquins a febre de espiritualidade "fashion" que avassalava as mentes & corações da época tinha espaço especial, com a apresentação carnavalizante de médiuns de todo tipo, parapsicólogos, espíritas, videntes e macumbeiros assumidos, astrólogos e perceptivos variados entortando garfos e colheres ao vivo e (dizem) via "telinha" preto-e-branco, pois o monstrengo do tamanho de uma cômoda e com desbotadas cores que a substituiria era privilégio de uns poucos milionários.

Na então denominada "Vênus Platinada" pela imprensa, hoje teleemissora do "plim-plim", a "Discoteca do Chacrinha" era unanimidade em todo o país, destacando através das enormes câmeras as primeiras bundas que o Brasil admirou -- entre protestos veementes de mães ciosas, de ciumentas esposas e namoradas ofendidas -- para deleite do sexo oposto de qualquer idade.

Abelardo "Chacrinha" Barbosa, com uma visão muito à frente de seu tempo, fazia de seu programa uma salada mista onde tudo era possível... principalmente as coisas consideradas impossíveis. Assim, entre bacalhaus, "bichonas" do high society local, calouros horríveis ou maravilhosos, abacaxis, trapezistas, mágicos, artistas da música e do teatro, bananas, malucos e doidas de toda espécie, o "Fio Maravilha", as primeiras "sapatonas" assumidas, entre bundas, coxas e "vergonhas" quase à mostra sob as minúsculas microssaias das fornidas "chacrettes" pontificava o macunaímico e impressionante "Seu Sete da Lira".

Inquestionável precursor do "kitsch" "Zé do Caixão", "seu" Sete não trazia lira ou qualquer outro instrumento musical. Portava, sim, satânico tridente, cartola de mágico de cirquinho mambembe, vistosa capa de seda negra, esvoaçante e aterradora, com forro em carmim e imensa gola. (1)
Velhota portuguesa de bigodinho e tudo, "seu" Sete da Lira causava espanto, fazendo triunfal entrada na "Discoteca" a som de pesada macumba e tendo um séquito de seguidores ensandecidos a acompanhá-la. A baforar enorme charuto, teve espaço cativo no programa por longo tempo e nem o mais criativo dos pastores modernos imaginam o "frisson" que sua presença causava no auditório histérico ou mesmo nos "televizinhos", quase toda a população brasileira daquela época.

O garoto "Didi" morava, ou melhor, escondia-se na favela da Praia do Pinto (onde não havia praia alguma), espécie de cancro social a ofender as vistas e narizes da alta classe média do Leblon, distnto bairro da zona sul.
Entre vielas e becos da estreita favela -- milhares de barracos espremidos no exíguo espaço de 600 x 900 metros de área hiper-supervalorizada -- "Didi" nasceu e cresceu, sorriu e por vezes chorou... até que providencial incêndio jamais explicado extinguiu lares, sonhos e até algumas vidas e jogou "Didi" e seus amigos pros confins do subúrbio do Rio, Nova Iguaçu ou além.

Enquanto "seu" Sete da Lira enricava, abrindo "terreiros" nos bairros mais chiques, imitadores com ou sem competência inauguravam "casas de luz e fé", "searas de maria e josé" e arapucas semelhantes, algumas misturando asilo e templo num só local e faturando alto com a esperança alheia e a estranha procura por fé em prédios, objetos, eventos ou em seus promotores.
"Didi", agora "Dinho", tivera que abandonar o "bico" de gandula das bolas de tênis dos endinheirados no seleto Clube de Regatas do Flamengo, bem do lado da favela e, adiante, o destino o guindara à posição de "animador" das sessões espíritas de uma casa de repouso para velhinhos no Grajaú, três vezes por semana, além de esvaziar as "comadres" toda manhã e fazer outros serviços sujos no casarão, em troca de comida, dormida e uns trocados.

O doutor Nicolau, de ar distinto, cabelos grisalhos e gestos nobres, fôra certamente em outra encarnação um falido rei do café mas, na vida atual, era o sisudo condutor das sessões onde filhas e neas dos anciãos internados ali, além de beatas curiosas das redondezas, cumpriam o ritual de falar com (ou tentar ouvir) seus entes falecidos.
Em pouco tempo o esperto "Dinho" aprendeu os ossos do ofício, suportando incômoda posição no poeirento e abafado sótão, enquanto seus ouvidos atentos captavam as nuances da voz do "doutor" lá embaixo, seus pigarros, as breves batidas no copo d'água ou no chão, com o sapato.

O maestro do "metier" espírita e seu esplêndido aluno entendiam-se às mil maravilhas, como por música, com a vetusta eletrola arranhando riscados LPs de Chopin, Listz ou Brahms e, em dia mais solene, um raivoso Wagner. As correntes de aço dançavam no teto do salão, arrastadas por mão invisível, surrado piano de poucas teclas animava-se por instantes, sinos, gargalhadas, gemidos... havia de tudo para todos os anseios.
O velho "Nico" deliciava-se intimamentecom a atuação genial de seu discípulo oculto no teto, mas "Dinho" bocejaria de tédio alguns meses depois, por saber de cor e salteado os evangelhos todos, os testamentos novos e antigos, as perorações do Nicolau, seus truques e "deixas" (ai, que sono!) os "in memoriam" e "de profundis", convocações, súplicas, expulsões, etc.

O pior de tudo é que uma das beatas que não largavam o pé do "médium" -- balzaqueanas que o serviam fielmente de dia e das quais (dizem as más línguas) êle se servia à noite -- começou a desconfiar do rapaz. A "perua" cismou com o moleque de sorriso fácil e ar malandro e insinuou para o mestre que o jovem estava conseguindo roubar dinheiro do cofre das missões, que ficava à entrada do casarão, aos pés da enorme "estáuta" do Preto Velho.
O doutor não via como isso seria possível... a estreita boca não permitia passagem de dedos, de caneta ou instrumentos e o segredo do cofre estava bem guardado no fundo de sua memória. Mas o fato é que "Dinho" melhorava seu mísero "salário" mediante expedições noturnas bem sucedidas ao abarrotado cofre.

À chinesa, com dois pauzinhos de comer arroz "pescava" várias notas por vez. Aperfeiçoou o "trabalho" imantando velha "peixeira" cuja lâmina saía da estreita boca do cofre "enfeitada" com moedas de todos os valores, tamanhos e cores. A farra só findou quando a tesoureura-mor decidiu retirar do cofre as doações ao fim de cada sessão espírita.
Tal ação coincidiu com o desinteresse de "Dinho" por suas funções "celestiais", cada dia mais desatento com as marcações de Nicolau e sempre mais sonolento. Até que uma tarde, solitário morcego em passeio fora de hora deu um tremendo susto em "Dinho" que, desequilibrado, estatelou-se entre as esquadrias carcomidas que sustentavam o cinquentenário teto.

Tentou em vão segurar-se na viga mas o apavorado mamífero voador chocou-se com seu rosto e, com fenomenal berro, "Dinho" aterrisou na imensa mesa de linho branco e castiçais acesos. Um vendaval de poeira e madeirame podre acompanhou-lhe a queda, enquanto as velhotas que não corriam esbaforidas feito baratas tontas achavam-se desmaiadas em ridículas posições.
"Dinho" levantou num pulo só e voou porta afora, o pulmão em fogo, rosto e corpo enegrecidos, espécie de saci-pererê batendo os dentes de pavor, com o morcego horrendo a debater-se em todas as direções. Muitos viram no sucedido um sinal do Além... o menino era um enviado das trevas.

Quando as coisas acalmaram, o rapazote foi sumariamente posto na rua da amargura e voltou para a casa da mãe, lá onde o diabo perdeu as botas. Mas as lições aprendidas com o "artista" Nicolau lhe apontaram novo caminho para a sacrificada e paupérrima existência.
Com uma camisa social do sumido pai, folgada demais para êle, mantendo junto ao peito surrada Bíblia da mãe que êle jamais abrira, "Dinho" começou a pregar seu "evangelho" nas lamacentas esquinas de seu bairro, repetindo a "decoreba" que ouvira meses a fio e preenchendo com criatividade as eventuais lacunas.

Com a persistência dos desesperados arrebanhou adeptos, prosperou lentamente no início, mais tarde o sucesso surgiu como sol de verão e êle saiu finalmente das ruas para uma "boite"... digo, o ex-antro de vícios e pecados era agora a casa de Deus (?!), pátio de milagres e de testemunhos, com explosões de fé e, claro, com a imponente presença do cofre das missões.
Passaram-se inúmeros anos e o safenado e decrépito Nicolau, longe das atividades que lhe deram fama, num belo domingo abre o jornal e reconhece "Dinho", bem nutrido e ar feliz, falando à fanática multidão.

Acima da enorme foto, a manchete escandalosa:"PASTOR ALDYR LOTA ESTÁDIO COM SEUS FIÉIS" e uma insistente referência a sacos e sacos de dinheiro.
O velho "Nico" tem um "treco", fica completamente transtornado e, ao dar entrada na emergência do pronto-socorro, estã balbuciando sem parar: "Era sinal do Além... era sinal do Além"! Quanto ao pastor Aldyr... esse, vai muito bem, obrigado !

"NATO" AZEVEDO

1) NOTA DO AUTOR: embora o ator e cineasta José Mojica Marins tivesse seu programa exibido na TV TUPI entre 1967 e 68, o "pai de santo" SEU SETE DA LIRA já atendia nos terreiros da zona norte do Rio de Janeiro.

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