MERCADORIA DE NATAL
Vinham, Celso e seu irmão, pela estradinha lamacenta rumo ao seu casebre na "invasão" Boa Vista -- espécie de favela melhorada, comum no norte -- quando loatidos esganiçados os alertaram para a gorda vira-lata que lhes cheirava os calcanhares.
Atrás dela seguia um menino de uns dez anos, moreno brejeiro com os olhos de japonês que denunciavam sua ascendência indígena, sobraçando um pacotte de verduras. Ambos já o conheciam, por se tratar do irmão de um jovem branquelo que, vez ou outra, levava uma bicicleta para consertos na casa dos irmãos e, quando o pequeno ía junto, trocavam breves palavras.
Porém, naquele fim de tarde puderam conversar por longo tempo e conheceram um pouco do confuso mundo onde o pequeno Márcio vivia ou tentava fazê-lo, para ser mais exato. Êle voltara da ingrata missão de ter que, por todos os meios e modos, livrar-se nas ruas do bairro de uma cadelinha grávida, caso contrário dormiria do lado de fora da casa.
Explicou com voz chorosa que, por mais longe que a levasse, ela sempre descobria o caminho de volta. Passou-lhes pela cabeça ficar com a bichinha mas como já possuíam uma cadela com filhotes, certamente ambas viveriam às turras. Separaram-se do petiz, frustrados em não poder ajudá-lo de nenhuma forma.
A noite, com seus dentes negros e úmidos, abocanhou os barracos. O tempo devorou vários meses, a "folhinha" na parede emagreceu visívelmente (e Celso com ela) e, quando deu por si, já estavam em dezembro, fim de anos e de década.
Nesse ínterim, êle cruzara algumas vezes pela mãe do menino -- uma baixinha de voz suave e andar delicado, que lembrava a mãe-ursa das estorinhas infantis -- passeando com sua sacola de perfumes e ervas aromáticas, que vendia de casa em casa.
No início da semana de Natal, período em que decidimos visitar pessoas as mais diversas no afã de desejar isto ou aquilo com o ar mais cretino do mundo, lá foi Celso bater à porta de Mr. Raymond Stern, escritor famoso no bairro e a quem não via a algum tempo.
Eis que se depara com dona Ursa, digo, com a mãe do menino em animado "papo" com o dono da casa e dois amigos artistas que o visitavam na ocasião. E chegou bem no meio de estranha conversa, com a figura "mignon" a insistir:
-- Então, o sr. vai querer ou não? Diga logo, que eu trago amanhã mesmo... até as roupas !
-- Bem, não posso decidir assim. Tenho que pensar por uns dias. Isso não é coisa que a gente aceite de uma hora para outra !
-- Ah, então o sr. não quer. Se quizesse mesmo levava na hora !
-- Não é bem isso. É que eu gostaria de conversar com o menino primeiro. Se êle disser que quer ficar, tudo bem. Arranjo uma boa escola para êle e, nos fins de semana, êle vem pass...
-- Mas, aquele garoto é "léso". Êle nem sabe o que quer !
-- Pois eu não concordo!, bradou Raymond, com voz estridente. Conversei com êle um bom tempo e o achei muito inteligente. A senhora nâo pode falar assim do menino.
Só então Celso percebeu que aquela doce "alemãzinha" estava praticamente negociando o destino do filho que, segundo soube depois, era fruto de um casamento que ela detestara desde o seuu início, talvez porque o marido era um tanto tostado para os padrões sociais (leia-se raciais) do país.
Manteve-se calado mas fuzilou-a com furibundo olhar "seca pimenteira" enquanto mentalmente lhe rogava todas as pragas que os exús truxeram à sua memória.
Percebendo que o ambiente não lhe era proprício e que todos visivelmente o censuravam a megera, com os olhinhos miúdos a cintilar atrás de grossas lentes, despediu-se.
-- Bem, já que o sr. não quer mesmo o menino, eu dou para outro... e voou porta afora, temendo reações.
Na véspera do Natal Celso encontrou-a novamente na casa de Mr. Raymond oferecendo perfumes mas não lhe dirigiu palavra e, após ela sair, seu amigo lhe confidenciou que a mãe já entregara o menino para uma família qualquer. O coração de Celso quase gelou pois, tendo passado toda sua infância longe dos pais, isolado em colégios internos, sabia como o garoto estava se sentindo.
A sagrada noite natalina cobriu com seu negro manto os casebres da "invasão" ainda sem as benesses da energia elétrica e a chuva fina que prenuncia o inverno amazônico marcava nos telhados de zinco -- como grãos de areia de colossal ampulheta -- os muitos segundos de íntima solidão, à luz de fantasmagórica vela.
Próximo dali, um cão vermelho esquelético e histérico uivava ao relento, indeciso entre manter a fidelidade natural ao seu dono ou retribuir o ódio que este lhe devotava.
A desgraça do vira-lata trouxe à lembrança de Celso o drama do menino, isolado em algum quarto distante, cercado de carinhos estranhos e sorrisos semelhantes a esgares.
Num barraco no final da viela onde Celso "se esconde" a mãe (?!) certamente preparava-se, entre beijos e bebidas, para "fazer" outro Márcio, queira Deus mais branquinho que essa malfadada criança.Era Natal... paz na Terra aos homens de boa vontade !
"NATO" AZEVEDO
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