domingo, 19 de abril de 2009

O ETERNO COMBATE DOS VENCIDOS

O ETERNO COMBATE DOS VENCIDOS


No imenso vale a circundar o palácio um mar de corpos jazia e, à distância, em muitos outros lugares e tempos a batalha pela Vida continuava, surda e persistentemente, pois os inimigos eram muitos, desconhecidos e cruéis, naqueles bravos tempos.
Entre ondas sucessivas de corpos mutilados de todo tipo, com trajes retintos de sangue e rostos crispados de dor, o magnífico faraó caminhava impassível e o séquito de extasiantes donzelas em alvíssimas vestes lhe cobria os passos.

À vista dele cessavam os gritos, os gemidos apagavam-se nas gargantas e reacendia-se nos corações a certeza de que só o Filho do Sol, que apenas o imortal Pshalou I poderia restituir a saúde a todos.
Ali, no vale dos (semi)mortos, bastava um olhar da divina figura e muitos se veriam curados, sãos para toda vida, vivos, enfim.

E o imponente soberano, rosto granítico, olhar comedido a vasculhar a amplidão, vislumbrou ao longe o que procurava: seu jogral, alento de suas noites de insônia, remédio único para sua melancolia, néctar suave para seu coração amargurado.
-- "Salve-me, Senhor, minha Arte é vossa vida"!, implorou o poeta real com os olhos, os braços estendidos em muda súplica.

A um breve aceno do Faraó as jovens conduziram Rayon para o templo de Osíris, cujo altar de gélido mármore se transformara em tábua de salvação para alguns ou porta de entrada para o reino das sombras.
De costas para o céu, rigidamente amarrado e amordaçado, os esculápios do reino extirpam dele o que não pode mais ser salvo... a serra rudimentar a fazer o serviço, com o sangue incontível inundando tudo.

Em poucos minutos finda a operação e o majestoso monarca, que a assistira com indisfarçável apreensão, não consegue reter as lágrimas.
-- "Oh, Amon-Rá, eu vi: o Faraó chorou... por mim! Êle chorou por mim"!
Rayon não poderia estar mais feliz. Recebera, a um só tempo, a dádiva da vida e de prèmio a amizade e a admiração de Pshalou I, sagradas pérolas em forma de lágrimas.

Lá fora, mutilados de todo tipo sustentavam (ainda) o eterno combate dos vencidos da Vida, aferrados tão-somente à esperança de salvação.
"NATO" AZEVEDO


Este conto é uma singela homenagem
a todos os que têm por função/profissão
lutar contra a Morte salvando vidas.

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(Publicado no jornal DIÁRIO DO PARÁ,
de Belém, em 4 de abril de 1991.)

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