quarta-feira, 22 de abril de 2009

TIRO E QUEDA / QUEDA E TIRO

TIRO E QUEDA

Raimundo Nonato era descendente de um povo que, geração após geração, "nordestinizou" aquela densa região, transformando-a quase toda num deserto.
Êle mesmo, com o espírito da caatinga a bradar dentro de si, não era muito "chegado" em florestas. Árvore para êle era só dinheiro ou, no máximo, cerca, carvão e, principalmente, travessas de sustentação das casas,
Num belo dia ensolarado, a canícula a cozer-lhe os miolos, saiu esbaforido do casebre de estuque e palha, voltando horas depois com um caríssimo "bonsai", que dispôs sobre o tronco podre de colossal samaumeira que um dia habitou soberana seu quintal.
Com os dedos da mãozarra à sombra do minúsculo arbusto, agradeceu aos céus por aqueles instantes de prazer.


Não era uma sexta-feira 13 mas 16, do azíago mês de cachorro louco, o ano de 61 quase no fim. Desempregado e aniversariando naquela data, João “Cabra da Peste” – leonino do 3º decanato – acordou sobressaltado, num barraco no Morro da Formiga.
Suando frio, confessou à sua fiel “Amélia” que tivera outro daqueles pesadelos... gigantesco leão a perseguir-lhe os passos (e os gritos) por toda a savana africana.
-- “Janjão”, meu bem, será que vais torrar de novo a “grana” do nosso almoço no jôgo do bicho ?!
-- Vou, nêga, um dia acerto esse leão de jeito... só assim a gente sai da lama. Despediu-se com um “dominus vobiscum” (adorava latim) e saiu.
Dito e feito, acertou no milhar... Voltou para casa com o coração aos pulos, ele aos saltos no meio da avenida, desligado do mundo.
-- Hei, cuidado com o carro... (carro? que carro?! paft-pum !!!) E lá se foi dinheiro para todo lado, com o corpo estendido no chão, desconjuntado e moribundo.
-- Anotaram a chapa do veículo sim e está com o guarda... L-E-O 1661! Do cara não sobrou quase nada, ficou igual cabra que leão “janta” na selva !


Tarde demais reconheceu que mudara-se para um local de vizinhança “deverasmente” perigosa. A princípio, ignorou o assédio e as provocações. Esquálido, “rato” de biblioteca desbotado por anos e lustros de penumbra, o “quatrôlhos” Dirceu Borboleta da Matta levava a vida sobressaltado. Sua 6º série completa e o ar de doutor incomodavam o “zoológico” local. A vidinha pacata que sonhara para si estava virando uma... “áfrica”.
Ora era o orelhudo coelho, mais a hiena e seus priminhos, a jogarem bola na porta de sua casa. Já a raposa malandra rondava à noite, com o leão e o tigre rosnando “sorrisos” de poucos dentes, enquanto a pavoa liberada, na calçada em frente, exibia suas coxas magras e a suposta riqueza de “classe média pobre-pobre”.
Por fim, as “piranhas” da zangona abelhuda tentavam morder-lhe os fundos, apesar de seus pimpolhos bichos-preguiça viverem pendurados na grade da casa, estendendo a mão com olhos pidões. Assistindo a tudo, o sapo-boi verde-oliva policiava a vida do distante “vizinho” com despeito e inveja. Se dependesse só dele o sujeito defuntava.
Mas Dirceu resolveu seus problemas duma só tacada, quando colocou dentro de casa um tremendo “canhão”. Dona Ursolina, avantajada elefanta de ar carrrancudo, transformou abusados lobos em dissimulados carneiros.


Na cela superlotada, de reles bandido passara a herói. Cercado de admiradores e a coberto do olhar indiscreto dos carcereiros preparava-se a 25 dias para o grande golpe de sua vagabunda vida... fugir da cela da Delegacia recém-inaugurada. Segundo a propaganda oficial o prédio era inexpugnável, fortaleza com circuito fechado de TV e todo o aparato técnico para tratar homens como animais selvagens.
Aos 30 dias, estava pronto! Magérrimo, pálido, de olheiras fundas mas com um brilho de vitória a cintilar nas pupilas, fez sua primeira refeição decente em um mês, ele que jejuara tanto que o apelidaram de “homem-cobra”.
À meia-noite cantaram-lhe parabéns e, após a última ronda da madrugada, escalou com dificuldade a “escada humana” de quase 60 corpos até a clarabóia do teto da cadeia. Sob delirantes aplausos, deslizou com algum esforço os ossos oleados por entre as grossas barras de aço e sumiu na escuridão, para nunca mais ser encontrado.
O “homem-cobra” virou verbete nos anais da polícia civil parauara e ajudou, com sua fuga, a melhorar o “rango” dos demais condenados. Com boa comida, engordavam o suficiente para ninguém mais aprontar outra daquelas.


Levar sua decisão final até as últimas consequências era questão de honra. Cansara-se das constantes humilhações, do menosprêzo com que todos o tratavam naquela casa, dos dias de fome nos tempos ruins e até de alguns maus tratos. Sua paciência chegara ao fim !
Jurgenaldo tratava, com um barqueiro, de um "rôlo" envolvendo sua velha espingarda artesanal mais o cão de caça em troca de esguio "casco", canoa longa e leve feita de robusto tronco de samaúma.
Pelos constantes olhares a ele dirigidos, "Fininho" entendeu que virara moeda de escambo, apesar dos quase dez anos de canina fidelidade ao dono ingrato. Ferido nos brios, embrenhou-se na mata cerrada, fugindo até o mangal que bordejava imenso rio, negro e lodoso.
As enormes patas -- sinal de cão caçador -- tatearam com cuidado os imensos galhos que atiravam-se sobre as águas, espécie de polvo vegetal petrificado na margem lamacenta. Com os dentes cravados numa pesada pedra, equilibrando-se sobre o trampolim de galhos, limo e folhas, lançou-se o cão de encontro ao fatal destino.
O lençol escuro e frio cobriu aquele corpo esquálido, costelas à mostra, angústia, determinação e desespêro sendo afogados por milhões de litros d'água. A honra lavada em lama, molares e caninos aferrados ao naco de rocha, o pequeno corpo preferiu a morte a uma vida infame, com novo dono, novas torturas.
Dias depois, por ironia do Destino, o corpo disforme do cão amanheceu no modesto porto do casebre de Jurgenaldo. Sem a pedra e sem alguns dentes na boca inchada, "Fininho" de olhos esbugalhados e sorriso sardônico mirava seu ex-patrão com ar de alívio. Pela primeira vez na vida Jurgenaldo chorou... fôra por água abaixo um ótimo negócio !


Definitivamente, não gostava de cachorros. Eram uns bichos enjoados, que recusavam a comida estragada que lhes servia com parcimônia.Também não bebiam da morna e fétida água, azêda pelo limo da vasilha e dos restos de alimentos, além de ousarem passar mal por causa do seu feijão com excesso de tempêros e gordura.
Pior: tinham a extrema audácia de morrer em pouco tempo, deixando seu filhinho desconsolado e triste. Uns nojentos, sem tirar nem pôr !
Comprou, então, imenso pastor alemão de ar agressivo e olhar atento, todo em gesso e porcelana, que "vigiava" a casa melhor que qualquer um dos anteriores.
Agora, quando êle chega do trabalho, Marcinho dá longos uivos de boas-vindas. O menino só faz "pipi" em postes e, à mesa, recusa tudo o que não fôr carne ou osso. O pai já está preocupado... a continuar nesse rítmo o garoto não demora muito sairá atrás da primeira cadelinha que cruzar com êle.


Voando, sobre as águas revoltas, o barco salva-vidas foi em disparada ao encontro das 3 jovens Marias semi-afogadas, todas em total desespêro e aos gritos.
Indeciso, o aparvalhado bombeiro acabou salvando somente uma delas. Pereceram Maria do Rosário e Maria do Sacramento.
Apenas Maria do Socorro se salvou porque, no derradeiro minuto, gritara a palavra certa.


Tentou com afinco e persistência tornar-se músico de talento, mas tal qualidade teimava em ficar bem longe dele.Por fim, desistiu e, pouco depois, era o barman mais solicitado da cidade e seu boteco o mais famoso.
Lá, o cliente saboreava batidas e "rabos de galo" feitas no bojo de dourado trompete. Era a glória !


O grisalho e alquebrado LUCINERGES COUTO, junto com José Luís Coelho, jovem dinâmico e decidido, apresentaram-se a Saõ Pedro nos portais do Paraíso, após muito vagarem por limbos e purgatórios pois, no Inferno, Satanás não os queria nem pagando estadia.O porteiro celeste torceu o nariz e o vasto bigode, arqueou as sobrancelhas e "abriu o verbo":
-- "Escritores não são benvindos no Céu. Vocês não passam de uns inúteis, nada constroem de concreto para a humanidade e ainda se acham o máximo, só porque rabiscam umas bobagens e inventam filosofias baratas, para sonsos, trouxas e cegos. Sumam daqui"!
-- "Per'aí, ô chaveiro de meia tigela... quem é você para nos julgar? Já esqueceu que traíste o Filho de Deus por 3 vezes lá na Terra"?, retrucou em altos brados "Zé" Luís, dedo em riste na cara do santo velhinho.
Deram as costas à entrada celestial e sumiram entre nuvens, ambos preocupados com seus futuros. Foi quando Deus-Pai Todo Poderoso, que após imprimir as Tábuas da Lei gostara do estranho ofício (!?) de escritor, apontou o divino indicador para a dupla e os transformou em belas estrelas.
Os céus de Belém não são mais os mesmos... tremeluzindo com luz opaca mas firme ou vibrando intensa e ocasionalmente, dois novos astros enfeitam de poesia e esperança o firmamento desta "reiste terra de tanga" (segundo "Zé") (1) ou deste "purgatório da cultura" conforme Lucinerges.
NOTA DO AUTOR: (1) conforme o artigo de José Luís Coelho
no jornal DIÁRIO DO PARÁ, de Belém do Pará, em 30/04/1989.


Em má hora a megaempresa comprar milhões de ações em moeda estrangeira e, com a baixa cotação do dólar, estava a um passo (ou a 1 níquel) da falência. Contratou então um perito em desastres, especialista em soluções tresloucadas, para ir a Brasília, à casa do Chefe da Nação e ver o que era possível fazer para evitar a bancarrota. 48 horas depois, o Jornal Nacional comunicava ao país que o "totó" do Presidente fôra envenenado e corria risco de morte.
As Bolsas de Valores -- normalmente sensíveis até à gripe de foca -- enlouqueceram e o dólar disparou qual foguete espacial. A multinacional estava salva... e o Brasil um pouco mais endividado !


-- "Mata" essa "barata" se fôr homem !, berrou "seu" Lucindo com voz histérica, dando forte palmada na mesa.
-- "Considere a maldita "mortinha da silva"!, retruca o Apolinário na bucha, pronto para o embate.
Dona Anita, preparando ansiosa o ajantarado na cozinha calorenta, largou tudo num segundo ao ouvir a agitação nervosa dos homens lá na sala. Armada com uma lata de "spray" contra insetos invadiu célere o reduto masculino, borrifando o ar tóxico no marido & convidados e empastando todas as peças do adorado jogo de dominó do compadre Firmino, sob o olhar atônito dos 4 parceiros.
-- Desculpem, vizinhos, mas barata aqui em casa é... tiro e queda. Não sobra uma nem para lembrança! Mas onde é mesmo que está a bicha ?


O cavalheiro, de terno surrado e pasta de vendedor de planos de saúde, senta-se junto ao balcão do bar e pede, apressado:
-- Meu jovem, me sirva um cafézinho, que há muito tempo não provo um!
-- Café ZINHO nóis num téin, serve di ôtru ?
-- Não, meu chapa, você não me entendeu... pode ser de uma marca qualquer mesmo!
-- Quar qui é a marca, seu moço ?
-- Esquece... me vê aí uma água mineral com gás, sem marca, sem côr e nem tamanho. Será que dá, meu camarada ?
-- Ágoa minerá... sorforosa ô arcalina ?
Ah, meu São Benedito! Cancela tudo, "capiau", deixa prá lá! Escuta, eu posso ficar sentado aqui por um instante ?
-- Uái, pudê inté qui pódis! Mais num si isparrama muinto no banco i néin abre "as asa" pro mode num incomodá quein tá pagano !
E seguiu balcão a fora... O citadino afrouxou a gravata e pensou com suas abotoaduras de zero quilates: "Eita, Brasilzão pai d'égua esse, tchê" !


Em pleno "shabat" a multidão aguardava ansiosa a salomônica decisão real que elegeria a Mãe do Ano, na judaica Belém de priscas eras.
Centenas de candidatas sonhavam com os valiosos brindes. Ânforas de ouro, baixelas de prata, cortes de seda pura, xales de linho da Pérsia e felpudas mantas de lã, amontoadas no centro do pátio do templo enchiam de cobiça os olhos da populaça. Em silêncio e com espanto o povo ouviu do famoso rei de Jerusalém, em visita à cidade, o seguinte:
-- "Como todas vocês, mães dedicadas, merecem os parcos prêmios, ordeno que sejam feitos em mil pedaços e dê-se a cada uma o seu quinhão, como recordação. Assim seja..."
No que alguém murmurou entre dentes, no meio da massa humana:
-- "Porca miséria... Depois do caso daquele recém-nascido, lá no seu palácio, esse doido não decide mais coisa alguma" !


-- Eu vi com esses olhos que a terra há de comer... foi tiro e queda! O sujeito veio planando igual borboleta e estatelou-se na calçada.
-- Mas porque esse louco cometeu suicídio... e logo do alto do prédio?
-- Só que não foi suicídio, moço; era um protesto contra morte da filha, assassinada por bala perdida durante um tiroteio da Polícia!
-- E desde quando, no Brasil, alguém protesta se matando ?
Afastou-se acabrunhado da multidão sedenta de sangue e de detalhes mórbidos, desejando intimamente que todo político que protestasse subisse antes ao tôpo de algum edifício. Em muito pouco tempo nosso país estaria bem melhor, com toda certeza!

(N. do A.: o trecho final foi escrito em meados de 2000, quando
balas perdidas não passavam de um mero pesadelo noturno.)

"NATO" AZEVEDO


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QUEDA E TIRO


De terno e gravata em pleno verão dos anos 80, ziguezagueando por entre o formigueiro humano que tumultuava o trânsito na principal avenida do Rio, o office-boy do Banco Internacional caminhava apressado rumo ao centro nervoso onde se realizam as apostas, negócios e investimentos da Bolsa.
Na surrada maleta 007, em meio a canetas, clipes, restos de sanduíche do Mc Donalds e minicalendários pornográficos, um papelucho em 3 vias, original e duas cópias, valendo quase uma dívida externa de país latino.
Com ar preocupado e um olho no relógio de pulso, o jovem voava rumo ao Banco Central, aos computadores que avalisariam aquela vultosa compra de ações, títulos, CDBs e RDBs, em nome de milhares de clientes do BI, de acionistas dele e com capital ativo do próprio Banco. Qual sapo errante em autoestrada bandeirante, o rapazinho "pulava amarelinha" por entre os bólidos movidos a ódio e gasolina, ouvindo buzinas e palavrões.
Avançava célere através das 4 pistas da Avenida Pres. Vargas, a equilibrar numa das mãos o sorvete de três bolas recém-comprado. Soldado de uma guerra sem armas nem canhões, só lhe faltavam 3 passos para alcançar a trincheira no outro lado quando uma das bolas escorregou paletó abaixo, espatifando-se na pista asfáltica. Por um átimo de segundo o garoto desviou a retina do trânsito enlouquecedor para avaliar o estrago feito no adorado terno.
Ouviu-se um estrondo, freios rasgaram o betume amolecido, um corpo riscou o espaço qual cometa de carne e osso e a multidão de curiosos cravou os olhos ávidos de detalhes mórbidos sobre o infeliz atropelado. O sangue quente e pastoso rabiscou no solo a ruína de milhares de famílias, enquanto invadia a pasta de documentos e tingia de carmim a boleta amarela de 9 bilhões e não-sei-quantos mil cruzeiros.
Na sala de computadores do Banco Central, com o pregão fechado impreterivelmente às 13,15h, ninguém entendeu porque o BI não honrara o investimento pré-acordado.Lá fora, o distante som de sirene de uma ambulância lembrou a todos que Vida continua e, como diz um ditado popular... "enquanto o Mundo gira, A LUSITANA roda".


Em plena semana de festa da padroeira da cidadezinha, o linchamento do pescador que matara um amigo a facadas após rodade de bebidas fôra a gota d'água que esgotou o resto da paciência do pároco local, polonês sisudo, dinâmico e muito crítico, com o qual boa parte do povo cristão antipatizava de imediato.
À noitinha, o reverendo subiu ao púlpito apenas para verberar contra a barbárie, condenando a meia centena de justiceiros que arrastaram o corpo, qual Judas de sábado de Aleluia, pelas vielas do lugarejo. Cancelou a novena e a missa subsequente e exortou a todos que meditassem sobre o sucedido.
-- "Ninguém é melhor do que ninguém... perante a Lei de Deus e a lei dos homens somos todos iguais !", disse o vigário em tom que não admitia réplica.
À saída da matriz o borburinho era grande, os buchichos de reprovação se ampliaram e a indignação cresceu qual maré de pororoca quando o sermão do sacerdote chegou aos ouvidos dos familiares da vítima, barqueiro abastado e querido no lugar, com inúmeros dependentes e empregados.
Na mesma noite, anjos encapuzados armados de paus invadiram a Casa Paroquial, enquanto a lua escondia-se atrás das nuvens, transida de pavor. O sol da manhã seguinte iluminou sobre o humilde catre do servo do Senhor apenas uma posta de sangue e ossos moídos, com os pássaros engaiolados cantando felizes mais um dia de vida na face da Terra.
O povo em geral, com algum espanto e um acerto alívio, aceitou bem a fatalidade, comentando com uma pitada de ironia que "se eram todos iguais, o padre era muito diferente deles". Talvez o fato servisse de lição, a fim de que o Arcebispo lhes enviasse alguém mais condescendente com seus hábitos, seus costumes e... tradições.


Finalmente aparecera um homem, com letra maiúscula, com cara e coragem suficientes para enfrentar a companhia estadual de habitação num combate desgual na Justiça. O processo corria na capital do país, pois a lei naquela região era "tábula rasa", estava desmoralizada, não valia um níquel. Ademais, a Banca Astronômica Nacional tinha interesses no caso e fizera pressão para que tudo fosse arquivado. Uma vitória do sujeito abriria precedentes danosos para a empresa.
Na nação da desigualdade e da injustiça, da corrupção e impunidade, do fausto ladeando a miséria, na terra da incompetência aliada à incúria e a uma total ausência de fiscalização em todos os setores êle, enfim, vencera. Custara-lhe meses de angústia de angústia e humilhações mas, graças ao jovem promotor Inocêncio Guedes, uma liminar inédita nos anais do Tribunal dera-lhe ganho de causa.
Acima da letra da lei, da Justiça de parágrafos e alíneas, havia a justiça moral, a que reconhece as necessidades vitais do homem (casa/alimento/liberdade), antes de conceitos burocráticos ou contratos oficiais. Fôra derrotado o descaso da perdulária BAN, seu descompromisso com o mau uso por terceiros do dinheiro público, a intermediação desnecessária e prejudicial que ela sustentava (e incentivava) nas questões de moradia popular.
E, acima de tudo, dera-se merecida lição na CORJHA, reduto de conchavos vis, de negociatas espúrias, de projetos fantasmas, fonte de injustiças planejadas e vinganças direcionadas.A Companhia Regional de "Jogadas" e Habitação - CORJHA pelo menos desta vez não poderia favorecer parentes e apaniguados de diretores e funcionários retirando na marra, das casas populares em atraso, as famílias que as pagaram por quinze anos ou mais.
Num belo "negócio da China", entregava um casebre de 4 x 6 metros sem reboco nem pintura e retomava, vários anos depois, uma enorme residência com diversos cômodos, forro, muro e lajotada.O ancião vencera todos e, numa decisão inédita, o juiz decretou que a CORJHA tinha direito tão-somente ao trecho da casa que originalmente ela entregara. As benfeitorias feitas quitavam junto à BAN o imóvel que, doravante, seria ocupado pelas duas famílias.
Foi sustada ação de imissão de posse e o consequente despejo, criando jurisprudência contra a "ciranda de habitação" patrocinada pela BAN. Caríssima e maciça propaganda estatal incentivando a compra de habitação popular, tempos depois gastos absurdos com editais e citações de despejo nas páginas dos jornais de toda a Nação e, por fim, casas e prédios vazios invadidos pela população despejada de outras tantas casas e prédios, estes também abandonados.
Hoje, o heróico ex-mutuário divide sua casa com um protegido da CORJHA, mas ambas as famílias vivem em boa paz. "Seu" Atanagildo e a idosa esposa pagam pelo uso do banheiro e chuveiro, além das refeições preparadas em sua antiga cozinha pelos novos "inquilinos".
Já o posudo e arrogante doutor Nilson Thamal, espremido com a mulher e 3 filhas no quarto & cozinha que a Companhia oferecia como modelo de casa popular, tem que pagar pedágio cada vez que entra ou saí da residência, transitando constrangido pelo corredor lateral onde uma roleta registra a quantas anda a ganância e a insensibilidade de alguns (ou de quase todos os) homens públicos, que imaginam jamais passar pelas dificuldades e humilhações que impõem a tantos brasileiros, quando exercem seus cargos.


O caso é real e recente mas fica melhor no reino da fantasia. A estória gira em torno de um jovem jambeiro -- árvore frondosa de médio porte, que doa à humanidade "maçãs" cítricas com formato de cajús -- e sua densa e incômoda folhagem.Industriada pelo marido a rotunda senhora acordou o vizinho dos fundos de sua casa, na rua anterior, reclamando que as folhas caídas sujavam seu exíguo quintal. A solução era cortar os braços, digo, podar os galhos que avançavam sobre o muro da distinta.
Aos irmãos cariocas não havia alternativa: recusar a "sugestão" era trocar aborrecimento sazonal por outro permanente. Aquiesceram a contragosto! Armado de escada, imenso facão -- "terçado", nestas plagas -- má-fé e mediocridade em doses cavalares, o macho da megera arrasou com a terceira dimensão do jambeiro (plantado ao pé do muro pela mãe dos rapazes), reduzido agora a uma banda só.
Menos de 5 meses depois, a Natureza vingava-se da covardia produzindo frutos em dobro no lado que sobrou da indefesa árvore. Flagrada "pescando" com enorme vara os jambos maduros em plena hora da sesta -- quando o Pará inteiro "tira um cochilo" -- a santa matrona não se fez de rogada.
Assomando o rosto de "Monalisa", tão comum na região, por sobre o muro, perguntou com ar inocente:
-- "Vizinho, posso tirar algumas frutas"?
-- "Pode sim, senhora... as que estiverem do seu lado do muro são todas suas". Com um sorriso amarelo, ela desliza igual jequitiranabóia de volta a seu quintal. Coitada ! Terá que aguardar 3 ou 4 anos até tornar a provar o intenso sabor dos rubros jambos. Às vezes, "aqui se faz e aqui se paga"!


Foi amor à primeira vista! Luizão, rapaz recém-chegado à discreta vila de poucas casas e Remo, garoto esbelto, talho fino e maneiras delicadas embora elegantes, nascido ali treze verões antes. Transbordando charme, com sutil rebolado, Remo voltava do supermercado sobraçando compras quando seus olharam se cruzaram. O que seus corações bradaram em silêncio valia por mil palavras. Tiveram ambos um sono intranquilo.
Filho único de pais separados, a jovem mãe satisfazia-lhe todos os caprichos, perdoando-lhe todas as faltas e crivava Remo de atenções e carinhos. Garoto caseiro, tinha por amigo e confidente, instrutor e modelo, outro jovem em tudo semelhante a êle, a quem apresentava como primo. Rômulo era cópia um pouco mais velha (e mais experiente) do amigo e, com maior liberdade, "caíra na vida" muito cedo.
Não demorou para que Remo lhe confessasse seu mais secreto anseio e êle, Cupido de gestos amaneirados e olhar indecente, apresentasse Luís à mãe carente e vaidosa do garoto. Luizão tornou-se íntimo da casa, vivia de visitas à mãe de Remo, que a vizinhança curiosa fingia não notar.
Passava horas no quarto jogando cartas ou dominó com Remo, trocando afagos, roçando beijos e carícias mais ousadas, ouvidos atentos ao menor ruído. Quando a mãe descobriu já era tarde, uma paixão devoradora tomara conta do corpo & mente do jovem Remo. Quando a mãe do Luís descobriu, êles já se preparavam para fugir de casa e morar juntos, num "bangalô" que Rômulo providenciara e onde satisfazia suas taras. Quando as demais mães residentes na vila descobriram, o "triângulo das bermudas" estava formado, com Rômulo completando o trio e a mãe de Remo abrigando todos para evitar escândalos.
Hoje, vivem os três no melhor dos mundos, corpos suarentos enroscando-se num amor selvagem e sem freios, braços e pernas cabeludas enroladas como serpentes aos troncos oleosos e perfumados. Felizmente, estão a salvo de pontapés, pauladas ou de um destino pior, por serem todos êles "gente da terra".


-- Pai, estão usando seu santo nome em vão em todos os lugares... até naquele ridículo esporte chamado futebol, veja só !
-- Dileto Filho, êles são perigosos... não vá você morrer de novo e, pior, por nada !
-- Eu vou voltar e acabar de vez com estas heresias... "se Deus quizer"!
Desceu à Terra na semana de Natal de 2010, com bela coroa de louros sobre a cabeleira indócil e vestes de beduíno, em pleno "Saara" carioca, sufocado em eio à multidão sedenta de compras & presentes. Tentou sem sucesso convencer a todos que era o Cristo em nova missão, visitou federações esportivas e Ministérios, governadores e doutores, igrejas e templos de todos os tipos e denominações, editoras e gravadoras, foi de Seca a Meca, do Oiapoque ao Chuí... até pousar na rica sede televisiva do Templo Mundial do Reino do Senhor.
Discretamente o Bispo-Chefe acionou sua segurança particular e o incauto Jesus acabou numa cela infecta de delegacia, onde a psicóloga de plantão recomendou imediato internamento no Manicômio Judiciário.
Por fim, durante a Semana Santa, Êle conseguiu convencer os demais internos a pregá-lo numa cruz, feita às pressas com as tábuas da mesa do refeitório. Em breve iria ressuscitar, para regressar ao local de onde nunca deveria ter saído... nem da primeira vez !


Após anos de tentativas infrutíferas, o cientista indiano Bapraput Kep'riw finalmente desenvolvera com sucesso sua experiência final: o "human bonsai".
Exibido no mercado central de Bombaim -- com os braços absurdamente retorcidos e os dedos das mães esticados ao extremo -- o menino de olhar triste esboçava pálido sorriso, correspondendo à curiosidade geral.
Sobressaltado em meio à multidão o jovem rosto de ar altivo equilibrava-se no topo de esguio pescoço, alongado pela força de engenhosas argolas. Apenas uma coisa o incomodava: os 2 vasos nos quais o plantaram eram pequenos demais para seus pés. Condoídas com a situação, entidades de defesa dos direitos humanos do país inteiro exigiram rega mensal e somente uma poda por
ano.
"NATO" AZEVEDO

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