CINEMA DE VANGUARDA
Enquanto a ditadura militar aprontava as primeiras "tomadas" do que se transformaria num longo filme de terror, o tal de cinema nacional tomava de assalto as bilheterias de quase todas as salas de exibição. Perseguindo o enorme sucesso que as extintas "chanchadas" da Atlântida conquistaram, as novas peliculas em cores de meados dos anos 70 primavam por muita correria, a pé ou em carros, alguma sacanagem quase explícita e diálogos quilométricos recheados de palavrões e têrmos cabeludos. Mas levavam público às salas, gente ávida por extravasar seus medos e uma libido super-reprimida fazendo muita algazarra, xingando uns aos outros e, vez ou outra, vaiando atores e estrelas que brilhavam na parede iluminada.
Florisvaldo era um desses assíduos frequentadores das poeirentas poltronas do Cine Jóia, descolorido prédio do mais modesto dos bairros da zona sul carioca, jovem complexado com seu próprio nome, insatisfeito com o mísero salário que findava antes do dia 15 ecom quase tudo o mais na vida. Sentado na sala escura, a mastigar nervosamente um saco de pipoca da sessão anterior, analisava preocupado seu investimento do momento.
Recusara a diversão garantida dos filmes americanos de sacanagem pura, de sexo profundo e escandaloso, apenas para valorizar a produção nacional. Não gostaria de passar pelo vexame de um domingo anterior quando, ao exigir na gerência seu dinheiro de volta em meio à projeção, quase apanha do "lanterninha" e de uns desocupados que usavam o cinema para dormir ou mesmo transar.
Florisvaldo armara um escarcéu dos diabos na ante-sala, "botara a boca no trombone" protestando em altos brados contra torpe qualidade do filmeco "Asyllo muito loco", um verdadeiro assalto ao bolso do trabalhador, achando que o Cine Jóia tinha a obrigação de prevenir a todos sobre isso. Afinal, êle era "crienti" daquela espelunca...
Sob vaias e assobios do público impaciente alguém ligou o projetor, com atraso como sempre e as imagens de uma típica família classe-média carioca encheram a telona, com a filha boazuda só de calcinha e a quarentona mãe com "rolinhos de bobs" nos fartos cabelos. A discussão matinal girava em torno da elegante "lulu" de ancestrais franceses, uma "poodle" branquinha que era o xodó de dona Amélia e filha.
Contudo Apolinário Neto, seu burocrático pai e o aposentado avô não morriam de amores pela esnobe e afrescalhada cadelinha, chata para comer e inútil como vigia, deitada eternamente em berço esplêndido (a cama da jovem Lúcia) ou no tapete da sala. "Liloca" ignorava olimpicamente todos êles!
Enfim a família estava toda reunida... polemizando na mesa repleta de alimentos e líquidos sobre a última moda do mal-sucedido projeto da "socyalite", a madame "Nenê", matrona dos Apolinários e que decidira "degolar" o rabo de "Liloca", pois essa a derradeira palavra ("dernier cri") em moda internacional.
Calças versus saias, os homens contra as mulheres da casa, batendo pé a favor da silenciosa (nem sempre !) cadela, que a tudo assistia sem entender patavina. Venceu o sexo frágil; afinal, dona Anésia era dona e senhora do inocente quadrúpede, que teve seu rabo decepado por outro animal de gestos delicados, voz melíflua e, dizem, alguns galhos na testa... num canil vizinho.
Tristeza quase geral, principalmente da bichinha, qua passava os dias a olhar para trás à procura do apêndice perdido. Foram-se os anos (no filme) e vovô Apolinário, cavando entre as raízes de seu roseiral favorito, no belo jardim que cultivava, descobre estupefato que o rabinho ali enterrado transformara-se em peludas minhocas falantes, que latiam em francês.
A imprensa brasileira, ávida por bobagens desse tipo, elege a família Apolinário manchete da semana, com as Rádios, as revistas e programas de TV de "gagás", "Gigis" e "Gugus" fazendo extensas entrevistas com os tres heróis e até com a cadelinha.
O filme se encerra com o vovô da confus família num caixão, desencarnado por estafa ("stress", hoje!) das viagens com as extraordinárias minhocas por toda a Europa, o Japão e EUA.
...........................................
-- "Puta que pariu, que merda! É mais uma daquelas bostas do tal cinema novo! Essa não... quero meu dinheiro de volta!", protesta exasperado Florisvaldo, espremendo os braços da poltrona, enquanto forçava com os pés a cadeira da frente.
Amassou com raiva o saco com restos de pipoca velha, lançando-o à distância. Mas não teve tempo para mais nada; começara a segunda parte do suplício, que desgraça pouca é bobagem. Raciocinou que a "grana" do ingresso já estava perdida mesmo, iria suportar o purgante até o final.
Vovô Apolinário chega aos céus, paraíso de filme tupiniquim com portão de papelão pintado e enfeites de cartolina dourada. Dá de cara com São Pedro e lhe apresenta seu currículo de belas obras, de caridades mil, de jejum, penitência e óbulos, de frequencia de missas, de novenas e de todo aquele "mise en scene" que faz a festa da Santa Madre Igreja.
O porteiro celestial ignorou o papelório e disse ao anjo Hahassiah que puxasse no computador a ficha do candidatoàs plagas divinais. O rapaz de asinhas caídas (problemas no elástico da fantasia) apertou botões num enorme guarda-roupa tremeluzente de metal que, gemendo e guinchando, cuspiu uns cartõezinhos perfurados. Noutra máquina semelhante, São Pedro imprimiu o histórico terrestre do avô.
-- "Bela ficha, seu Apolinário... jardineiro, funciuonário público aposentado, músico, escoteiro na juventude. Hahaiah, veja se tem vaga pro vovô numa dessas categorias aí, em qualquer dos cinco céus!"
-- "Ha, ha, ha, mestre... o sr. está sonhando? Nem no 6º céu, o dos padres e bispos -- que quase sempre não passam do purgatório -- tem mais vagas. O céu está completamente lotado!"
-- "Hahahel, o que você sugere? O problema também é de vocês, pois são meus ajudantes!"
-- "Nada feito, santo Apóstolo! O sétimo céu é dos serafins e querubins, dos potentados e principados. Esta nobre alma terá que aguardar até que surja uma vaga. Afinal, alguns arcanjos já foram expulsos daqui, no principio de tudo. Quem sabe o fato não se repete ?!"
Por fim o anjo Lehahiah teve brilhante idéia. Providenciou uma placa com os dizeres "PORTA DO CÉU - entrada - aguarde na fila" e deu para o vovô Apolinário segurar, dizendo:
-- "Vai matando o tempo aí, velhinho, até chegar a sua vez. Afinal, quem não fazia nada lá embaixo não vai cansar aqui... depois, funcionário público sabe melhor que ninguém armar uma fila!"
E o filme foi se desbotando, se apagando, com uns dizeres que ninguém lê sobre as imagens, enquanto o resto da paciência de Florisvaldo desvanecia-se junto com a película. Levantou aos berros, clamando contra aquela "cachorrada" e pedindo o dinheiro de volta.
Nem chegou à metade do corredor... um segurança tipo armário embutido, cuja sombra dava dois dele, botou-o para fora do cinema aos safanões:
-- "Sai prá lá, vira-lata ordinário! "Se manda" antes que eu te dê uma porrada. "Tá pensando que cinema é casa de caridade? Some já daqui, seu cachorro!
"Florisvaldo implorou aos céus que o transformassem naquele instante num mastim, doberman ou pastor alemão, para estraçalhar as canelas daquele brutamontes desgraçado. Cruzou a rua, noite alta já, a cuspir impropérios ao segurança, olhando de soslaio para trás para conferir se o "cavalo vestido" não o perseguia.
Quiz o Destino que uma caminhonete, vindo em sentido contrário, jogasse violentamente Florisvaldo contra o macadame rijo e frio, que asfalto era privilégio só de algumas avenidas.
Estrebuchando nos estertores da morte, com o sangue quente tingindo o negro terno de "tergal" (não amarrota nem perde o vinco") adquirido no crediário da Maré Mansa, Florisvaldo ainda conseguiu ler no "baú" do veículo: "CARROCINHA DA PREFEITURA -- mantenha seu cão na corrente e vacine-o todos os anos".
A família do falecido descobriu tempos depois, através de um amigo médium, que Florisvaldo reencarnara como um robusto e irado "pitbull", de dificil controle até pelos próprios donos.
"NATO" AZEVEDO
Nenhum comentário:
Postar um comentário