C O N F I T E O R (à guisa de prefácio)
O Latim, tido como língua morta, continua mais vivo do que nunca. Apesar da nossa santa Madre Igreja -- num de seus momentos de "maria vai com as outras" -- tê-lo eliminado de seu dia-a-dia, o que restou do idioma continua por aí, como um fantasma redivivo, a nomear novas plantas e seres, estrelas e remédios e, aqui e ali, em obras literárias ou processos criminais. Um dos muitos contracensos de uma comunidade cada vez mais global.
Sinceramente, não sei porque escrevo! Alguns dos grandes nomes de nossas letras já afirmaram que o fazem por angústia. Outros mais, quando o momento de inspiração os invade e a vontade de escrever se torna irresistível.
Affonso Romano de Sant'Anna deixou para a posteridade definição magistral:
"quem escreve, o faz para não morrer; quem lê, lê para imaginar que vive" !
De minha parte, o que me move são dois sentimentos tanto opostos quanto indistintos. O intuito, mesmo velado, de apontar êrros, de corrigir o Mundo e, paralelamente, um desejo sutil de "vendetta" diante da impotência (ou inconsciência) geral frente aos fatos da Vida.
Escrever se torna bem menos prazer e lazer do que desabafo indignado (e, por vezes, virulento) por tantos "sapos" e "pepinos" que o Destino nos põe no prato da existência, mesmo quando se está farto.
Rezam as filosofias que o Mundo segue como deve ser -- apesar das guerras, da miséria e das perversões humanas -- mesmo que assim não nos pareça.
Em Belém do Pará um jovem amigo poeta me declarou belo axioma, há mais de dez anos e que jamais esqueci... "o Mal por si mesmo se destrói!" (No caso dele acabou sendo verdade!)
Infelizmente, não tenho passividade ou paciência suficientes para esperar as coisas mudarem por si. Apresento-me, sempre que posso, para dar uma "mãozinha"... empurrando o carro da História e/ou dos desatinos da humanidade um pouco mais rápido para o abismo.
Coisa de libriano perfeccionista, com lua negra (Lilith) em Leão, Dragão de água no horóscopo chinês e pedra e água são duas constantes em nossa vida, como bem percebeu meu irmão gêmeo Renato, espécie de místico anarquista.
Por que escrevo... quando na realidade deveria estar procurando um trabalho ou uma ocupação que me desse o sustento? Por que escrevo... se acredito, como o personagem de William Shakespeare, que "palavras são palavras e nada mais que palavras"?
Por que escrevo... se sei que os livros não mudam sequer as pessoas, quanto mais esse vasto e miserável Mundo? Por que escrevo... se ninguém (exceto eu mesmo) me lê, como sucedeu a tantos antes de mim, como sucederá "per omnia saecula" se o Mundo continuar seguindo seu imutável curso?
Sinceramente, não sei porque escrevo !
Há, é claro, a satisfação do texto bem escrito, do conto bem acabado, com comêço e meio... que o fim é sempre uma incógnita, mesmo para o escritor, acreditem se quiserem.
Pode existir até uma pontinha de inútil vaidade, quando momentâneamente se atinge a tão almejada perfeição, mas tudo acaba logo que se fecha a gaveta, assim que guardamos a pasta de originais, registro & memória que só o Tempo tocará dali por diante, com seus dedos apodrecidos.
Iniciei muito jovem, escrevendo meras cartas de poucas linhas, elogiando a programação das raras Rádios rockeiras do Rio de Janeiro (eram os dourados anos 70!) e fazendo pedidos. Adiante, passaria a me dirigir a grandes empresas cariocas (com cartas redigidas à mão em folha de caderno, imaginem!) solicitando investirem mais no lazer de crianças e jovens das praias da zona sul.
Quando tive um amigo assassinado na saída de um baile funk -- isto em 1977 ! -- escrevi aos grandes jornais alertando para a crescente violência de seus frequentadores e cobrando alguma atitude.
Não sei o que fez de mim um escritor... e numa família em que todos (exceto minha falecida tia Anita) veem a atividade como ato inútil, coisa de preguiçoso, tarefa "que não dá camisa a ninguém".
Trago gravada, entre as imagens da infância, a de meu inchado e avermelhado primo Joãozinho, espécie de cigano andarilho menosprezado por quase todos, escrevendo compulsivamente em blocos de folha de papel grosseiro, dia após dia, só Deus sabe o quê. Ou, então, tocando "violão" com uma cadeira ao colo. Pobre amigo... morreu de cirrose hepática, mas eu já não estava mais na cidade.
Para o bem ou para o mal a AMAZÔNIA -- seja lá o que o têrmo signifique -- fez de mim um escritor. Numa terra com raras empresas de porte e cujo comércio é essencialmente familiar (com emprêgo de parentes próximos e seus agregados) nos sobra a todos um imenso tempo para não se fazer nada.
Quem não é empregado de alguma entidade oficial (federal, estadual ou municipal) está literalmente "na rua da amargura", vivendo de expedientes, com ou sem aspas, muito embora numa terra tradicionalmente "de meio expediente" o "dolce far niente" é geral depois da "meia hora", como se diz por aqui. (Bem, após os dois parágrafos acima, sei que já perdi quase todos os leitores fanáticamente paraenses !)
De qualquer forma, bom, razoável ou ruim, sou um escritor... que me importa se isso pouco ou nada signifique? E, no coração da Amazônia, cuja "capital" é toda arborizada com exemplares que a floresta original não possui, faço destas páginas meu "confiteor", numa visão que pode parecer a alguns parcial ou apressada mas que é visceral e legítimamente minha, sem empréstimo de opiniões (ou de obras) alheias.
Um trabalho quase tão árido quanto esta devastada Amazônia, decantada em prosa e verso, cuja exuberância se imagina mas não se vê.
Sou um escritor amazônico, quer isso me agrade ou não, mas (ainda) não amazônida porque esta agradável vivência próximo (ou dentro) de um pará-íso se transforma, graças a um regionalismo equivocado, numa existência onde as decepções, como as chuvas locais, são diárias, com hora marcada e não falham jamais.
Todo e qualquer escritor teve um guia, alguém mais experiente a lhe apontar caminhos, espécie de "pai" intelectual. Rendo, pois, minhas homenagens ao professor vigiense e poeta maior da "cidade das águas", JOSÉ ILDONE, lá onde a Amazônia existe de fato e de direito e em cujo lugarejo Itaporanga -- pedra bonita, segundo seus legítimos habitantes -- dei meus primeiros passos literários, à sombra de um sem-número de palmeiras e de árvores frutíferas de toda espécie.
Nascido e criado no ex-Morro dos Cabritos, hoje rua Euclides da Rocha, na zona sul do Rio de Janeiro, fui levado com 5 ou 6 anos para a casa dos meus tios, na calma e simpática Rio Negro, no sul do Paraná, com imenso rio de águas marrons e belas pontes de ferro.
Estudamos, eu e meu irmão Renato, o curso primário num colégio de freiras, no extremo norte de Santa Catarina, num vilarejo "polonês" no cume de enorme montanha (Alto Paraguaçu), situado no município de Itaiópolis.
Enfim, uma vida inteira quase como cigano, entre Rio e rios ("parás"), entre águas e pedras ("itas"), entre morros e planícies, entre o sul e o norte como bússola enlouquecida. E, enquanto trabalhava na sede carioca da MRN - Mineração Rio do Norte (viram, eu não disse ?!) me veio repetidas vezes o convite de meu irmão mais velho para vir morar em Belém... do Pará, dos rios, das águas e das pedras.
Aqui estou... e, este livro, que camufla em despretenciosos "contos" muito mais da minha vida (e dessa estupefaciente experiência) do que eu gostaria, tem a decidida intenção de registrar o sucedido.
Claro está que, como criador, é meu dever moldar o real, dar-lhe nova roupagem e "com a liberdade que o devaneio proporciona" (obrigado, João de Jesus Paes Loureiro!) redirecionar uma realidade mesquinha e por vezes angustiante para o terreno da arte literária, da metáfora, do imaginário.
É do poeta insígne de "Altar em Chamas", mais amazônida do que nunca, a explicação definitiva: "Na cultura paraense-amazônica o ilógico explica o lógico, o possível revela o real, o devaneio torna-se meditação, a relação maravilhada com as coisas converte-se em método criador. A arte no Pará é o lugar privilegiado dessa TRANSREALIDADE, que está no âmago de nosso pensamento, como coincidência de opostos: do real e o imaginário. (...) A realidade torna-se incrível e o imaginário credível. Vivendo no particular, temos o prazer do desmedido". (in "Arte e Desenvolvimento", pag. 20, Cadernos IAP, vol. 2, Belém/1999)
"QUASE NADA..." é um modesto escrito, sem pretensão à grande obra literária, de um Autor que só estudou até o 2º ano do antigo Curso Ginasial (agora, 6ª série). Entretanto, nem por isso deixou de aprender na "universidade da vida", que dá conhecimentos mas não confere diplomas.
Hoje, sou espécie de coruja de olhos arregalados para os seres (e os fatos) da Vida, tentando se possível fazer alguma prêsa. Se você vai aventurar-se por entre estas "espinhosas" páginas esteja atento mas, mesmo assim, chegará ao fim da jornada com alguns "arranhões".
Em certos casos, deixará pelo caminho algum pedaço... do cérebro ou do coração.Siga em frente! Contudo, cuidado com os cachorros... êles costumam ser mais humanos que seus donos e isso é insuportável !
ANANINDEUA, Pará, BRASIL, dezembro de 2000
"NATO" AZEVEDO (poeta e escritor)
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