quinta-feira, 23 de abril de 2009

HISTÓRIAS COM SEIVA DE BRASIL


HISTÓRIAS COM SEIVA DE BRASIL

Nelson Hoffmann

Como foi não me lembro, mas contaram-me, há tempos:
- Olha! Tem um cara, lá no Pará, que é fã de tuas letras.
Fã? Essa era boa... Quem seria? Passaram-me nome e endereço. O nome, Cincinato Palmas Azevedo, era-me estranho; mais estranho ainda ficou-me o nome da cidade: Ananindeua.
Em todo o caso... É tão difícil encontrar leitor!

Escrevi-lhe. E foi o desate de um turbilhão. Senti-me, de repente, num redemoinho. Fui envolto em rodopio, eu não sabia o que estava acontecendo. Parecia-me alucinação, eu estava sendo arrastado, tragado, para um mundo inexistente.
Sobre mim desabaram informes, informações, notícias, panfletos, recortes, jornais, revistas, excertos, desenhos, cartuns, fotos, cartões, um mundo fantasmagórico. Velho barranqueiro do Ijuí, eu não concebia o mundo que se me apresentava.

E vieram poemas, poesias, trovas, reportagens, crônicas, contos, tudo instruindo-me sobre uma Amazônia que não viajava na mídia oficial. E tudo era-me enviado por Cincinato Palmas Azevedo, grandíssima parte de sua própria autoria. E o que não era, confirmava o autor.
Cincinato Palmas Azevedo é escritor e assina como "Nato" Azevedo. Carioca de nascimento, perambulou por este país quase inteiro. Vida de andarilho e alma de cigano, tanto rodou por aí que, um dia, foi dar com os costados na longínqua Belém do Grão-Pará. Lá, por endereço, fixou a cidade de Ananindeua, na região metropolitana, onde reside.

A formação literária de "Nato" Azevedo é de mundo e não de academia. Suas leituras são de revistas em quadrinhos e de aventuras e nada têm de canônico. De nossa elite intelectual, simpatiza com Monteiro Lobato, Aluísio Azevedo e alguma coisa de Coelho Neto. Prefere Jorge Amado a Machado de Assis. Deste, no dizer do próprio, pode ser que vá levar alguns volumes em meu esquife, talvez assim...
Assim é "Nato" Azevedo, um escritor brasileiro. Veterano de mil peripécias literárias, e outras nem tanto, o autor está lançando “Quase Nada...” , um livro de contos. Este é uma reunião de alguns dos seus melhores trabalhos, muitos já publicados, acrescidos de um bom número de inéditos.

Os contos de “Quase Nada...” espraiam-se pelo Brasil e não são todos rigorosamente contos. Alguns ingressam no terreno da crônica, outros tecem comentários, terceiros adentram o relato de experiências vividas. Mas, todos são histórias que prendem o leitor até o fim. Esta, aliás, uma característica muito forte: o suspense dos textos, sempre com um impacto final.
As histórias de "Nato" Azevedo podem ser distribuídas por três cenários: a) de fundo histórico, b) de ambientação urbana e c) de paisagem amazônica. Alguns outros extrapolam a divisão, o que serve para confirmar a base.

As histórias que visitam a nossa História desenvolvem-se em períodos bem diversos e focam assuntos os mais diferentes. Assim, temos o canibalismo e a atuação missionária dos padres em “Manjar Celestial”, o surgimento do nome da cidade mineira de Juiz de Fora em “O Impasse”, a escravidão e a mineração em “Bené, o Dente de Ouro” e outros. E é de chamar a atenção para “O Sal da Terra”, um belo relato da simbiose terra-gente do Grão-Pará, centrada na árvore-símbolo, a castanheira.
Já na ambientação urbana, as histórias acontecem, de preferência, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. A ação de “Manchete Fatal” desloca-se, em movimento de vaivém entre as duas cidades, o que é fundamental ao desfecho. “A Última Chance”, por sua vez, acontece inteira em São Paulo e foca um problema tão nosso conhecido: a febre das loterias, horóscopos, cálculos, rezas, palpites, benzeduras, mandingas, tudo por uma chance na sorte grande.

Mas, “Um Sinal do Além” e “Cinema de Vanguarda” são destaques da vida urbana carioca. Situadas na década de 70, tem-se reflexos, conseqüências e produtos do regime político implantado em 1964, do início da tevê, da agonia do cinema nacional. A proliferação de seitas religiosas, a massificação da comunicação, a resistência por uma arte nacional é um pouco do muito que aparece. E a total ignorância de nossas elites na apreciação de uma obra artística é desmascarada em “Revelação do Ano”.
O melhor da obra de "Nato" Azevedo, porém, está nas histórias que envolvem cenários amazônicos. Ali o autor é vigoroso e está em casa. Como vem do Sul, tem olhos para ver e ouvidos para ouvir e nariz para cheirar e tato para apalpar e gosto para sentir nuanças que o caboclo da aldeia não percebe. Como tem vida e mundo no lombo e muita argúcia na cabeça, o autor nos conta histórias que raiam pelo absurdo e são de pura humanidade.

A gente sente uma gratificação toda especial com o final feliz de “Um Presente Especial”; participa da epopéia dos transportes rodoviários em plena selva amazônica, com “O Fantasma do Sino”; e sofre a angústia de quem mora nessa “Paisagem Amazônica”.
E o ser humano integra-se/desintegra-se, funde-se inteiramente com a selva, a natureza amazônica, em “O Olhar Penetrante da Noite”. A Amazônia é um redemoinho, um turbilhão que arrebata, prende e engole.

Toda essa temática é trabalhada em estilo intencional do autor. Nada de inovações ou pirotecnias. Sempre um modo narrativo tradicional, naturalista: a interação meio x homem, homem x meio. A realidade é subvertida de forma irônica e, por vezes, acusatória. Mas, é sempre muito brasileira, com seiva de Brasil.
Ainda, um último detalhe: o curioso processo de metalinguagem que atravessa todos os textos. O processo diverte e chama a atenção, servindo de esclarecimento, alerta ou questionamento. É uma bem-humorada e inteligente maneira de prender o leitor e instigá-lo a reflexões não previstas.
"Nato" Azevedo arrastou-me para o seu mundo. Fui sugado como por um redemoinho. E mergulhei numa Amazônia devastada, sofrida, explosiva, primitiva, exuberante, selvagem, judiada, desmatada...
Hoje, "Nato" Azevedo tem um fã em mim.

Autor de "EU VIVO SÓ TERNURAS"
E-mail: nelsonhoffmann@yahoo.com.br

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