domingo, 19 de abril de 2009

MANCHETE FATAL

MANCHETE FATAL

Planejara tudo nos mínimos detalhes... aliás, nos três últimos meses não fazia outra coisa senão calcular item por ítem, dado por dado como se fôra jogador profissional de cassino, a pensar cada lance e cada passo. Na hora certa, agiria qual detetive d novela policial, silencioso e sem deixar rastro, perfeito em cada gesto, invisível até para os mais próximos.
Hermenegildo (com H, por favor!) era um tipo circunspecto, já avançado nos anos, de mia idade diriam as más línguas, sempre d terno escuro, gravata surrada e com o inseparável guarda-chuva de cabo de madrepérola.

Uma figura machadiana, complementando à perfeição o ambiente de Rio antigo do que ainda resta de casario do princípio do século 20 nas redondezas do bairro do Catete.
Instalara-se "há séculos" num sobradão de poucos andares, no 2º pavimento, num prédio tingido de cinza pelo suor do Tempo, em forma de enorme U, com um grande pátio interno, silenciosa testemunha de fofocas entre varais de roupa, entreveros, com latões de lixo e seus visitantes noturnos.

Hermenegildo (com H, por favor!) amealhara pequena fortuna enquanto contador ciente de suas qualidades, de boa e fiel clientela e o cofrezinho num canto do vetusto armário comprovava parte de sua rendosa trajetória.
Apenas 2 anos antes o amor batera à sua porta e, como uma andorinha só não faz verão, o enferrujado coração aquiesceu aos arrulhos daquela voluptuosa "pombinha" morena, pecado de mulher morando ao lado ou, mais exatamente, no apartamento 23, produto mais que perfeito da miscigenação de quantas raças tenham aportado na ex-Terra de Vera Cruz. Provocava ela na macharia tantos ou mais clichês e chavões que os deste modesto conto: "uva", pedaço de mau caminho, "avião", tesouro, nora que mamãe pediu a Deus, etc.

Sandra Rosa Madalena era daqueles "petiscos" que nenhum "coroa" em sã consciência levaria para o sagrado recesso de um lar, mas o deslumbrado Hermenegildo (dane-se o H, filha!) Álvares de Assis deixou-se levar pela luxúria e pela ingênua crença de que seu rico dinheirinho compraria a fidelidade da sensual mulata.
Ledo engano: bem pouco tempo depois que, discretamente, juntaram os trapinhos o sisudo e renomado doutor em contabilidade e a ex-babá (doutora em sacanagem), os sonhos do "Menê" -- assim lânguidamente ela o chamava, com voz d gata no cio -- foram para a vala comum dos projetos e ideais tachados com lamentoso bilhete... "ah, se arrependimento matasse"!

Mal o "Hermê" saía peal porta da sala -- com o H e a honra tão diminuídos que já nem se os notava -- a fogosa morena "se mandava" pela porta da cozinha, ía "costurar prá fora", " jogar água fora da bacia", se acabar nos dançarás vizinhos, cobiçada pelos cachaceiros de plantão.
Marido traído é o último a saber e êle, que sequer casara com a "zinha", custou a crer quando soube. A bandida tinha tudo, do bom e do melhor, era-lhe tão difícil guardar-se só para êle?!

Macho ferido nos brios, fabricou dia após dia a vingança, que só agora poria em prática, sem falhas nem èrros para poder continuar uma nova vida em São Paulo, livre e desimpedida como sempre fôra, antes daquela ordinária entrar nela.
Sentado na ampla sala ornada de móveis antigos, ruminava o golpe de mestre que preparara a fim de castigar a perfídia da ingrata. A hora estava próxima, o dia (ou melhor, a noite) era aquela e a miserável nem sabia. Relembrou as constantes chacotas & chalaças da vizinhança, os presentes que vez ou outra chegavam para sua cara-metade e o agora sofrível desempenho da fogosa flôr-da-lama nos raros momentos de "exercício conjugal".

Chegou a hora da onça beber água, regosijava-se Hermenegildo, repassando cuidadosamente seus passos... desde meses antes quando se fizera sócio de um grande escritório de contabilidade no centro da capital paulista.
Lá, quedava-se laborando frenéticamente de segunda a sexta, só regressando para os morenos braços da devassa "esposa" aos sábados... como o de ontem, especial, com jantar em restaurante chique a beira-mar e sessão de cinema (pornô, é claro!) em seguida.

O domingo surgiu resplandescente, bem carioca e o casal foi ao Shopping, onde "Menê" cobriu seu antigo amor de presentes, um mar de caixas e bolsas que afogaria com certeza a mais persistente das vaidades. As fofoqueiras de plantão no velho prédio emudeceram todas, roxas de inveja e engasgadas pelo despeito.
O contador, olhar superior e um leve sorriso de môfa sob o bigodinho à la Clark Gable, deu por findo o 1º ato. Aproximava-se o momento do "Gran Finale".

A natureza cobriu de veludo negro a maravilhosa cidade, a noite prenunciava chuva e a indefectível novela global -- sobre uns italianos radicados em São Paulo, "tutti cosa nostra" -- em seus derradeiros capítulos avassalava corações & mentes. Chuviscava forte quando êle bateu na porta do apartamento 21, pigarreando com exagerada energia somente para atrair a atenção dos moradores do 22, o que de fato conseguiu. Solicitou da senhora portugusa suas roupas, por ela lavadas e passadas com carinho. Despediu-se de todos com um leve aceno do chapéu, retornou ao lar no fim do corredor, beijando longamente Sandra Rosa Madalena.

19,30h. Na rua, respirou fundo o ar molhado enquanto providencial "pé d'água" tamborilava sobre seu guarda-chuva. Solitário táxi o levou em poucos minutos ao Aeroporto Santos Dumont e, às 20 horas adentra ao saguão para os procedimentos de embarque, confirma presença na lista de passageiros da ponte aérea Rio/SP, movimenta-se bastante na sala de espera, mostra-se, preparando o álibi do crime mais que perfeito.
Às 20,20h o avião pefixo AZ-AR 13 parte... mas sem Hermenegildo que, sorrateiramente, esgueirara-se jhunto ao alambrado logo que o grupo de passageiros dirigiu-se para o avião pronto na pista, uns 30 metros além. Voltou o mais discretamente possivel ao estacionamento do aeroporto, entrou no seu carro, rumando sem pressa de volta para sua casa. Alugara o automóvel em modesta "Rent a Car" do interior paulista com documento falso, que esse luxo vulgo computador permitia essa e outras "comodidades", mas destruiria o papelucho assim que devolvesse o carr.

21,15h. Êle, que não fumava a anos, tragou com volúpia um Hollywood, a marca do sucesso. O show, a partir de agora, não admitia erros. Deixou o modesto mas possante veículo a quadra e meia do sobradão, enterrou o chapéu de feltro quase até o nariz, vestiu a capa de chuva igual a dos mocinhos dos clássicos do cinema e dirigiu-se com extremo cuidado para os fundos do prédio. O pátio a céu aberto era um breu só !

21,25h. Lá estava a corda dupla que ligara à coluna da cristaleira de pinho maciço, bem junto à janela dos fundos. A novela estava no auge do drama lacrimogêneo, nem a Bomba H tirarias as beatas e "candinhas" da frente da "telinha".
Subiu com imenso esforço ao 2º piso, luvas protegendo as mãos suaves da corda crua, o coração latejando no peito, um suor frio a porejar-lhe a testa.A sensual Sandrinha, esparramada no sofá, deu um grito de surpresas ao vê-lo surgir do nada na sala em penumbra, julgando ser um fantasma.
Hermenegildo ignorou-a por instantes, indo fechar os cortinões de sda da enorme sacada, com vista para o pátio interno.

21,35h. Sentou-se a seu lado, alisando seus belos cabelos de sereia. Incontinenti, jogou com ódio e violência sua cabeça para trás do sofá, ao mesmo tempo em que tapava o rosto dela com o almofadim, sufocando-a até a morte.
Um prazer orgasmático tomou conta dele, sentiu-se qual valente garoto que dera cabo de uma sepente venenosa.

21,40h. Arrastou o inerte corpo até o quarto do casal, onde monstruoso armário Luís XV serviu de cadafalso para a infeliz defunta. Com uma corda no pescoço, o corpo foi guindado ao alto, a ponta oposta bem amarrada ao pé do guarda-vestidos de jacarandá. Um banquinho ao lado compunha tétrica cena de suicídio, sem bilhetes até porque a morenaça não dominava os meandros da escrita.

21,45h. Hermenegildo foi ao banheiro, voltando de lá com um copo de urina que entornou sobre o roupão e as pernas a extinta. Devorar os romances da extensa coleção "Mistério Magazine Eleery Queen" de muito lhe servira nessa hora. Jogou o copo no lixo após desinfetá-lo, apagou a luz do quarto e desceu corda abaixo, recolhendo-a toda por um dos fios.
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Regressou a toda velocidade para São Paulo, o veículo voando na madrugada vazia, a satisfação da obra-prima zoando em seu ego, enchendo-lhe o peito de glória e poder.
O tênue sol paulista rasgava espaços entre a floresta de concreto e aço quando o extenuado Hermenegildo varou pelo Viaduto do Chá, doido por uma "média" com pão e manteiga que, pelo menos nisso, êle ainda era bem carioca.
Estacionou na porta de um "pé sujo", barzinho chinfrin no coração da cidade que ´não pára e, enquanto saboreava um "pingado" (café com gotas de leite), surge à porta um menino jornaleiro, humilde na honrada pobreza, roupas rôtas e chinelo gasto, a vender palavras que tornam ainda mais ricos alguns poucos.

Com um assobio Hermenegildo traz o garoto até si. Adquire a Folha e fica lívido ao ler a manchete fatal. estampada em letras garrafais:
"NOVO ACIDENTE COM AVIÃO DA TAM -- AZ-AR 13 choca-se contra montanha -- nenhum sobrevivente". Relacionado entre os mortos seu belo nome.
Largando a chícara com estardalhaço no balcão, o "defunto" saiu correndo rua abaixo, fora de si, praguejando contra Deus e o Mundo.

"NATO" AZEVEDO

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