O "RABO" DO "TATU"
"Ramiscléin" era um produto típico da Amazônia, misto de índio e negro, estatura relativamente baixa, entroncado, de corpo atlético excessivamente bronzeado pela canícula regional.
À primeira vista causava certa desconfiança no interlocutor, com algum tempo conquistava o afeto de quantos o conhecessem, pelo jeito descontraído e também por seu virtuosismo com a flauta de cano d'água (PVC), qualidade surpreendente até mesmo para a maioria dos nativos que o constante contato com a mãe-natureza transmutuva em artistas amadores.
A visível ignorância do caboclo e sua incômoda humildade quase sempre iludem ao mais perspicaz citadino. Só muito tempo depois êle reconhecerá seu equívoco porém, até lá, o pobre miserável na visão do "invasor" leva uma bruta vantagem no jôgo de poder & barganha que se estabelece entre os nascidos nas "selvas de pedra" e o filho legítimo da hiléia tropical.
A história que se segue foi-me narrada por um amigo (e compadre) do flautista, mas como os motoristas, pescadores, caçadores -- que o ribeirinho também é! -- e caboclos em geral fazem parte daquela fauna para a qual fato e invenção são partes inseparáveis da mesma história, prefiro tratá-lacomo um mewro conto.
Aliás, me veio agora à lembrança o entrevero literário, pelos jornais de Belém, em fins da década de 90, entre um renomado professor e a jovem vencedora de um concurso cuja obra, um Diário ficcional, quebrava as barreiras entre crônica e conto, quase um sacrilégio segundo os puristas.
Voltando à vaca fria, o Dr. Estefânio de tal era um tipo longilínio, alto, descarnado, "cabeça de ôvo" segundo os locais, empertigado e de ar superior, mais parecendo um maguari a pisar com relutância o lamaçal.
Com sacrifícios vários adquirira uma nêsga de terra no interior da cidade de Vigia, no aprazível lugarejo paraoara denominado Itaporanga, numa transação altamente suspeita com um colombiano de passado obscuro. O "dotô Stéfio", como a caboclada o chamava, sequer fazia jus ao título porque mero ex-diretor de um escritório de representação comercial no Rio, onde amealhou o dinheirinho que lhe permitia hoje fingir-se de fazendeiro.
O sítio era um esplendor, algo do outro mundo, 3 km X 150m de palmeiras frutíferas das mais variadas espécies, frutas regionais "di tuda inspécha i colidadi", como afirmava com orgulho seu confinante. No costume local o têrmo vizinho é usado como cumprimento ou saudação, quando se desconhece o nome de alguém.
Passados alguns meses "sua excelência" encasquetou com a idéia de construir um chalé ao lado da rodovia estadual, na "cabeça" do terreno, já que a sede localizava-se no fim da gleba, às margens do riacho Itaporanga.
O casarão surgiu em dois tempos, madeira de boa qualidade, "bangalô" com varanda e janelões, tudo "nos trinques" até que, num belo dia, começou a ruir o sonho do magnata de ser visto (e admirado, pensava êle!) por meia cidade, que circulava dia e noite pela estrada de asfalto. É que todas as paredes internas começaram a sumir, tábua após tábua a cada luar, sem deixar rastros.
Meu conto terminaria aqui, como tantas estórias semelhantes, não fôra a luminosa idéia do Estefânio de contratar nosso amigo "Ramiscléin" como investigador particular, regiamente pago com mantimentos, fumo e até pólvora para seu vetusto trabuco artesanal.
Caçador exímio, "paqueiro' de fama na região, êle não se fez de rogado... armou seu "mutá" no cimo da frondosa mangueira, tendo varado 3 ou 4 noites na tocaia, sem ter visto uma vírgula qualquer. Bastante determinado, voltou ao "barão" pedindo-lhe paciência e algum tempo mais, pois era época de chuva devido à saída da lua. "Adispois", tinha largado meia tarefa de roçado ao léu e aquilo era seu sustento.
Além disso, "Ramiscléin" descobrira pegadas de tatu próximo da futura casa, bicho "porrudo" e não queria ver escapar a oportunidade (e o animal). Esse roedor, misto de coveiro e tartaruga, cava túneis sob troncos e grossas raízes onde vive e se esconde. Ao menor sinal de perigo entoca-se bem fundo, "recolhe" a cabeça e os membros mas deixa à mercê do inimigo o extenso rabo, sua perdição. Acuado pelos cães, ao caçador resta somente o arriscado trabalho de tatear buraco a dentro até topar com o rijo apêndice dorsal.
Fôra uma noite feliz! Matara dois "coelhos" duma só cacetada... "Ramiscléin" exibia para o "patrão" o troféu antediluviano de olhos já vidrados e a notícia há tanto ansiada. Descobrira os ladrões ou, melhor, o modus operandi dos "lalaus" e mais o produto do roubo, que largaram às pressas no local do crime.
Êle até vira os 2 pilantras de relance, subindo à toda na carroceria de uma caminhonete.
-- "Dotô Stéfio", sinhô nein magina... us desinfeliz passava as táuba di um troncu pôdri prá ortu mais avanti, fazeno ponti cum bucado delas. Daí, travessavam prucima i recuía tudu nortu ladu... entonces, num ficava rastu nein matu batidu !
Recebeu efusivos cumprimentos da "doutorada" em peso, almoçou com toda a nobre família, preparou o ex-tatu ali mesmo no jardim sob os olhares recriminadores e lacrimosos do "baronato" in totum e partiu ao fim da tarde, com nova carga de mantimentos como prêmio.
Nunca mais sumiu um prego da nova construção, o "barão" pôde terminar o casarão sem sobressaltos e o polivalente "Ramiscléin", marceneiro/pedreiro como poucos no lugar, foi nomeado capataz com ótima paga e expressivas responsabilidades.
Passado um bom tempo após a conclusão da obra, o dr. Estefânio ressentia-se da falta de seus instrumentos básicos como serrote e martelo "emprestados" pelo flautista, que não fazia menção de os devolver.
Decidido a recuperá-los a qualquer preço, certa manhã bem cedo rumou caminho afora até o barracão, trilhando reles fio de terra serpenteante entre moitas e monstros de galhos e folhas, pois a gente da terra parecia detestar linhas retas. Suava frio toda viagem, com pavor de picadas de cobra ou de escorpião, habitantes bastante comuns daquelas plagas, mas enfim chegou ao retirado local, sola pino.
Deu de cara com um casebre que mal se mantinha em pé, a frente de velhas tábuas azuladas pela umidade da floresta e o vira-lata latindo esganiçado dentro dele. Evidentemente o dono não estava; fôra certamente para uma daquelas intermináveis pescarias, sem hora certa para acabar porque dependiam das marés.
Maré é assunto sério na Amazônia e regula vida de pessoas, cidades e até de quem não depende dela.Estefânio circundou o barraco miserável até os fundos... e quase morreu do coração! As tábuas roubadas estavam todas ali, brilhando de novas, uma incongruência absurda naquele trastede casa.
A raiva messiânica de Moisés ao pé do Sinai apossou-se dele. Respirou fundo, reuniu o pouco de coragem que ainda lhe restara e espiou pelas frestas da janela recém-feita para o interior da cozinha do patife. A mesa, cadeiras, prateleiras, chão e até a cama, divisórias e tudo o mais construídos com suas queridas tábuas, compradas a duras penas.
Teve a nítida impressão que a floresta inteira ria dele, a caboclada toda borrando-se de tanto gargalhar. Voltou aos trancos e barrancos para o casarão, com a família cansada de esperá-lo já findando o almôço e anunciou, com um fio de voz e os olhos faiscando:
-- "Nós vamos voltar para a capital amanhã mesmo... arrumem suas coisas e ai de quem der um pio"!
Na mesma semana os jornais de Belém anunciaram a venda de maravilhoso sítio na cidade de Vigia, com rio, frutas e duas casas, tudo a preço de banana nanica.
Para tristeza geral "Stéfio" nunca mais foi o mesmo e, sempre cabisbaixo, trazia indelével na memória a lembranaça da vaidade mortalmente ferida a pauladas, digo, a "taubadas" como comentava a patuléia com escárnio.
Contudo, sua família jamais tomou conhecimento do vexaminoso episódio.
"NATO" AZEVEDO
Nenhum comentário:
Postar um comentário